Ninguém se estranhe do pensar em Deus, nesta imagem, Excessividade Caótica. Não é assim tão descabida, se Excessividade é negação de limites, de qualquer limite, de todos os limites, e se Caótico se refere ao caos, e Caos é abismo sem fundo. Mas o Excesso é espasmódico: retrai-se, retém-se, contém-se; não sabemos quando, nem onde, nem como, nem porquê. Sei, entrevejo como imagem de sonho que mal emerge para logo imergir nesse outro abismo que «eu» sou, e de que me apercebo em fugazes momentos em que me distraio do «mim mesmo», entrevejo, dizia, um deus em cada espasmo da Excessividade; quando ela se retrai, se retém e se contém, nasce um deus que se excede em mundo que o oculta. É como se assistisse de perto a uma irrupção vulcânica de que jamais se viu o princípio nem se verá o fim. Um deus é parte daquela parte do todo que se derrama pelos flancos da montanha, é o fogo que se extingue nas lavas que se alastram pelos longos da planície inerte e nela se vão erguendo, como se estereogramas fossem de uma linguagem só decifrável como o falar de um mundo, tentando desvendar o mistério da sua origem, tentando dizer quem é ou o que é o deus que nele se oculta. Mito é isso, ou nada é. Bem se vê, todavia, a imprescindibilidade da alegoria. Alegorizamos Deus, chamando-o de Excessividade Caótica, acrescentando que o Excessivo se retrai, se retém e se contém; que a Excessividade é espasmódica; que um deus participa do Excessivo, quando, ele mesmo, se excede em mundo; que tudo se nos afigura como um vulcão; que suas lavas, feitas estereogramas de uma linguagem, falam da vida do deus que lhes deu a forma de mundo, ou, antes, da sua morte por extinção do fogo; que era necessário que ele se extinguisse para que mundo houvesse. Tautegoria do impulso mítico, criador de mitos, tão tautegóricos quanto o impulso, não dispensa a alegoria, não dispensa que se diga uma coisa que outra quer dizer. O decisivo, em mitologia, não é banir o alegórico. É fazer que no allo (outro) se mostre o tauto (mesmo). Aliás é esta a fórmula da semelhança: A é semelhante a B, quando, de algum modo, em A se veja a imagem de B, uma imagem, não a própria figura. «Um deus é semelhante a Deus» quer dizer: em qualquer dos deuses de que a mitologia fala, vê-se uma imagem de Deus, quando se queira ver o que acima se disse — um deus excede-se, sempre se excede, e o excesso é mundo. Mundo é obra da excessividade divina: todo e qualquer mundo é divino por excesso. [EudoroMito:52-53]