estrutura da noção de ser

Até o momento foi reconhecido que a noção primeira da inteligência, correspondendo à mais fundamental determinação e à mais universal das coisas, é o ser; que o ser é constituído de dois aspectos complementares, essênciaexistência, que o definem como “alguma coisa que é”. É preciso mostrar agora que esta noção universalíssima tem, se a compararmos aos seus inferiores, um comportamento de todo especial; bem mais, ela implica, nela mesma, como que uma espécie de oposição ou de tensão íntima, o que vai nos constranger a reconhecer-lhe uma estrutura original, distinta daquela das ideias universais comuns. Mas vejamos de início como se põe o problema da estrutura interna do ser.

O ser é a noção mais extensiva que se possa conceber. Tudo na realidade, atual ou possível, se encontra referido ao ser. Como, entretanto, um conjunto de coisas tão diversas conseguirá unificar-se em uma noção comum?

Tomemos uma comparação. Como na classificação lógica das ideias universais passamos do gênero à espécie, e inversamente? Suponhamos, por exemplo, que os animais possam ser divididos em duas grandes espécies, os vertebrados e os invertebrados. Todos os animais pertencem ao mesmo gênero animal e se dividem em duas espécies através da intervenção das diferenças vertebrado e invertebrado. Dir-se-á, em lógica, que um gênero se contrai em suas espécies pela determinação de diferenças específicas diversas. O que torna possível uma tal distinção, é que as diferenças em questão não estão atualmente contidas no gênero; o animal, como tal, não é nem vertebrado e nem invertebrado. O ato diversificador vem se juntar, como que do exterior, ao gênero princípio de unidade.

Acontece o mesmo no caso do ser? Coloquemo-nos em face da multiplicidade dos seres que nos dá a experiência e da noção de ser que pretende representá-los todos. A noção de ser tem uma certa unidade, na ausência da qual não poderia ser atribuída à multiplicidade dos seres Dito de outro modo, quando afirmo que esta mesa é, que esta cor é, etc . . . pretendo dizer que um mesmo atributo lhes convém proporcionalmente. Mas também penso que esta mesa não tem o mesmo modo de ser que esta cor, etc… E esta diversidade, compreendida sob a noção de ser, se manifesta ainda mais quando a atribuo a objetos transcendentes, particularmente a Deus: digo que Deus é; o ser de Deus será comensurável com o das realidades inferiores? O que, pois, em definitivo, virá diferenciar o ser de todas as coisas? Será uma diferença tomada fora do ser? Não, pois se esta diferença não é ela própria do ser, não será nada e não poderá portanto diferenciar. As diferenças do ser devem ser de uma certa maneira do ser. Mas como poderão ser ao mesmo tempo diferenças?

Somos assim levados a reconhecer que o ser não pode se diversificar como um gênero, uma vez que não existe diferenças reais tomadas fora do ser. Trata-se, em suma, de cindir uma noção sem sair dela mesma. É isto que poderemos chamar o problema da estrutura da noção de ser, problema que se revela desde o início difícil de resolver; pois corre-se o risco, ou de acentuar demais a unidade às custas da diversidade, ou, pelo contrário, de se apoiar de tal modo nesta que a noção termine por ser comprometida. No primeiro caso, termina-se no monismo estéril dos eleatas ou no panteísmo, no segundo caso, em um pluralismo ininteligível, isto é, na negação de todo pensamento orgânico. A teoria da analogia vai nos permitir sair de um tal dilema. [Gardeil]