Estado romântico

O culto do Estado nos românticos não vinha de que atribuíssem ao Estado poderes arbitrários e sim de que viam no Estado a imagem do Volk, que exprime da maneira mais completa os mesmos princípios que regem as vidas individuais isoladas. O culto do Estado foi próprio inclusive dos liberais românticos. Leopold von Ranke, Henrich von Treitschke e Wilhelm von Humboldt, vivamente preocupados com a liberdade individual e com o papel da personalidade na História, consignaram no entanto ao Estado os mais plenos poderes. Os economistas, poetas e filósofos românticos acreditaram no Estado. Mas na concepção romântica, os poderes não eram conferidos ao Estado enquanto fonte de opressão, e sim enquanto símbolo de Volk, e imagem da totalidade e da unidade. O Estado era então considerado como incarnando o mesmo princípio que dá realidade e sentido às liberdades individuais. O Estado tem então poder absoluto, não como antítese do indivíduo, e sim como expressão do mesmo princípio que forma o indivíduo. Nesta linha é que Treitschke respondeu ao ensaio de Stuart Mill, On Liberty, com outro ensaio Die Freiheit, onde sublinha o papel do Estado nacional contra o cosmopolitismo. Treitschke, grande historiador e historicista, lutou pelo Estado nacional, não enquanto instituição jurídica, e sim enquanto comunidade moral; foi, neste sentido, um dos mais vigorosos nacionalistas que se conheçam. Para Treitschke, o poder do Estado nacional era a medida da liberdade.

É o cosmopolitismo, o internacionalismo, e não o Estado nacional o sinônimo da opressão e da miséria moral verdadeira. O Estado nacional, que protege e explicita os valores nacionais, que nasce desses valores na medida em que é realmente nacional, é sinônimo de liberdade, justamente porque o cosmopolitismo e toda tutela internacional representam a negação da liberdade. O cosmopolitismo é próprio só de povos desfibrabrados, que perderam a unidade de si mesmos, que não têm cultura própria, e que por isso mesmo não existem historicamente.

A noção romântica de Estado, em suma, só pode ser compreendida a partir da noção romântica de Volk. O Volk não pode nem deve ser considerado uma entidade coletiva, no sentido de uma coleção avulsa de indivíduos; o indivíduo é uma realidade concreta, cuja existência aliás os românticos sublinharam. Porém, não são os indivíduos que formam o Volk, e sim o Volk é que forma os indivíduos. E este Volk, que forma os indivíduos, não se parece absolutamente com aquele “grupo social” de que falavam os sociólogos positivistas e que era um objeto superior e exterior ao indivíduo; o Volk não tem nenhuma das características atribuídas pelos positivistas ao grupo social. Ao contrário, enquanto matriz a priori, enquanto categoria cultural e metafísica, é um princípio intrínseco, originário, interior e não exterior ao indivíduo.

Fichte, Schelling e Hegel são essencialmente os filósofos do processo dinâmico. Concebem o mundo com todos os seus fenômenos como posição, oposição e síntese provisória dos contrários. Deus, a Natureza e o Estado são partes de um processo absoluto no qual o ser, o vir-a-ser e o deverser se identificam. Schelling não altera essa perspectiva quando põe o Estado, não como sujeito do processo dialético, e sim como a condição desse processo. Schelling diz, na sua Philosophie der Mythologie (23.a lição), que o Estado, com sua raiz na Eternidade, é a base durável e indestrutível de toda a vida humana e de todo o desenvolvimento posterior do espírito. Ele é o que é estável e o que não comporta revoluções. No processo dinâmico, o Estado é o reflexo do que permanece; todas as reformas devem dar-se dentro dele e não contra ele; a missão do Estado é garantir ao indivíduo a máxima liberdade, uma liberdade que se exerça acima e fora do Estado e nunca no âmbito do Estado; o Estado é uma base, uma hipótese, uma ponte de passagem necessária no processo do Espírito. O Estado, como espelho da Nação, deve permanecer desenvolvendo-se, refletindo o processo de que é a emanação.

Hegel insere a Nação no processo universal dialético, como o desenvolvimento coerente de um princípio particular que exprime o Espírito Absoluto. A Nação é uma determinação particular, característica e inconfundível, do Espírito universal; o Volksgeist, ou espírito do povo, é a manifestação do Welt-geist, ou espírito do mundo; mas há no Volk um absoluto, enquanto ele encarna um destino intransferível, constituído pela explicitação das suas virtualidades.

Em Hegel, a Natureza e a História são exteriorizações do Espírito, que toma consciência de si, determinando-se em entidades particulares. O Espírito Absoluto é a essência da Natureza e da História, que são etapas do seu desenvolvimento. A História é o Espírito nas épocas e nas Nações. A Nação, que se identifica com o Estado que a espelha, aparece como realidade muito mais concreta que o indivíduo, porque mais universal do que este último e porque encarnação mais ampla do Espírito universal. Um Volk em Hegel se define como determinação do Absoluto incarnando-se no Estado. É uma determinação do Espírito Absoluto sob a forma do Espírito de um Povo. O Espírito do Povo é a fonte da liberdade; Hegel diz, numa passagem da Filosofia do Espírito (§ 73), que a pessoa só existe como tal pela força interna e pela necessidade que o espírito do povo lhe comunica; a pessoa só é livre no espírito do Povo. Em outra passagem (§ 257) Hegel diz que o Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva; é o espírito moral como vontade substancial revelada, ciara a si mesma, que se conhece, se pensa, e realiza o que sabe por sabê-lo; o indivíduo tem sua liberdade substancial ligando-se ao Estado, como à sua essência, como fim e como produto de sua atividade.

Seria absurdo então confundir o Estado com a sociedade civil, como a Revolução Francesa e os regimes individualistas confundiram. Quando o Estado é confundido com a sociedade civil e visto como instituição destinada à segurança e à proteção da propriedade e da liberdade individual — quando em suma os interesses individuais são vistos como o fim do Estado, então o Estado não passa de um contrato civil e se torna facultativo ser membro ou não de um Estado. Mas se o Estado, como afirma Hegel, é o Espírito objetivo, então o indivíduo não tem objetividade, nem verdade, nem moralidade senão com a condição de exprimir o espírito do seu Volk, cuja corporificação deve ser o Estado. O Volk é uma categoria mais geral que o indivíduo; nele se nasce e se morre; nele não se entra, dele não se sai por um ato de vontade deliberada. Sair do seu Volk seria o mesmo que querer sair de si mesmo, ser o que não se é. Numa passagem da Filosofia do Espírito (§98) Hegel critica os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade; e noutra passagem (Phil. des Rechts, § 279) critica a noção de “soberania do povo”. Tais críticas decorrem espontaneamente da visão hegeliana do Estado e da noção do Volk como totalidade anterior às partes que a representam e como fonte da liberdade. Em Schelling também (Phil. de Myth., lição 23) o Estado, longe de suprimir a liberdade individual, ao contrário, a torna possível, elevando o indivíduo à dignidade de pessoa. A lei, que o Estado impõe, só se torna opressiva quando não se processa a libertação moral interior.

Mas o Estado, assim visto por esses filósofos, não é o Estado burguês, o Estado mercador e o Estado de classes, e sim o Estado como reflexo da imagem divina, como forma superior da comunidade, no sentido verdadeiro de Gemeinschaft.

Não só em Fichte, Hegel e Schelling, mas nos românticos em geral, inclusive nos católicos, a nacionalidade, com o Estado que dela decorre, assume o significado de um reflexo da imagem divina, isto é, do que Hegel chamava o Espírito Absoluto. Schleiermacher, teólogo, Arndt, poeta, Humboldt, filólogo, veem a Nação sob essa perspectiva. Define-se claramente em Schleiermacher e Hegel a tese de que Deus confere a cada nacionalidade a sua missão terrena, animando-a de um espírito definido, que promove as suas inconfundíveis características peculiares, e cujo fim é sublimar o Espírito de Deus no mundo. Os católicos se lembravam da antiga doutrina patrística de que cada Nação tem a marca do seu Anjo.

Só no Estado se realizam todas as características do Volk, e o Volk é uma totalidade que assume e transcende o indivíduo. O destino do indivíduo se define em função duma escala de valores que emanam da cultura do seu Volk; os destinos e as realizações individuais não se compreenderiam fora dessas opções cuja essência está no Volk. O Espírito do Povo, assim como é concebido pelos românticos, não é portanto resultado do desenvolvimento histórico (ou dos sentimentos comuns, ou das experiências e derrotas sofridas em comum) e sim ao contrário, o desenvolvimento histórico de um povo é que é o resultado do seu Espírito particular. O Espírito particular emana de uma determinação do Absoluto, que projeta esse Volk, juntamente com a sua particular visão do mundo, com todo o conjunto das exteriorizações orgânicas da sua vitalidade, com sua língua e com sua música, numa determinada e intransferível missão histórica. De Hegel — como de Fichte e Adam Müller — derivam todas as doutrinas de Weltanschauung, toda a Völkerpsychologie, bem como a teoria spengleriana das fisionomias culturais. Porque Spengler, afinal, pertence à linhagem dos idealistas, e não dos positivistas, como se tem erradamente afirmado. [Barbuy]