Escoto Erígena

Inesperadamente aparece, na primeira metade do século IX, a grande figura de João Escoto. Na pobreza cultural e especulativa do seu tempo, este homem dotado de um espírito extremamente livre, de excepcional capacidade especulativa e vasta erudição greco-latina, surge como um milagre. Através de Santo Agostinho, João Escoto relaciona-se como o mais genuíno espírito da investigação filosófica, tal como havia surgido na idade clássica da Grécia. Erígena tem consciência das exigências soberanas da investigação e afirma-as decididamente. Quando tropeça com a realidade incompreensível de Deus ou da essência das coisas, não afasta as armas dialéticas nem prescreve o abandono, à , mas volta a assumir a mesma incompreensibilidade no âmbito da investigação, dialetiza-a e faz dela um elemento de clareza. A razão preguiçosa, que neste período da história da filosofia descobre tantas formas de entrincheirar-se por detrás das exigências da , não consegue assenhorear-se dele.

A obra de João Escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evolução da escolástica. As suas fontes principais são as obras de Santo Agostinho, do Pseudo-Dionísio (que o próprio Escoto traduziu do grego) e dos Padres da Igreja, especialmente de S. Gregório e S. Máximo. Em toda a especulação posterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com ele direta ou polemicamente. O papa Honório III, numa Bula de 23 de Janeiro de 1225, condenou a sua obra-prima: De divisione naturae. Muitos doutores escolásticos, antes e depois da condenação, entram em polêmica contra as suas afirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marco fundamental na filosofia escolástica.

VIDA E OBRA

João Escoto é chamado Erígena devido ao fato de ter nascido na Irlanda (Eriu-Erin, Irlanda). A data do seu nascimento deve andar à volta de 810. Não se sabe com precisão o ano em que se dirigiu a França, para a corte de Carlos o Calvo; mas deve ter sido nos primeiros anos do reinado deste rei. Com efeito, Escoto Erígena participou na controvérsia teológica suscitada pela tese do monge Godescalco sobre a predestinação; ora a condenação de Godescalco verificou-se em 853, depois de largos e solenes debates. Muito provavelmente, a vinda de João Escoto para França foi anterior ao ano de 847. Carlos o Calvo nomeou-o diretor da Academia do Palácio, a Schola Palatina, em Paris; a convite do mesmo rei, Erígena traduz as obras de Dionísio o Areopagita, cujos textos o imperador bizantino, Miguel Balbo, tinha oferecido a Ludovico Pio no ano de 827. O papa Nicolau I queixou-se ao rei do fato de Erígena não haver submetido essa tradução à censura eclesiástica antes de a publicar e quis instaurar um processo contra as heresias que a mesma continha. Depois da morte de Carlos o Calvo, no ano de 877, não há notícias seguras sobre João Escoto. Segundo alguns, teria morrido em França nesse mesmo ano; segundo outros, teria sido chamado pelo rei Alfredo o Grande, para a escola de Oxford e, mais tarde, como abade de Malmesbury ou de Athelney, teria sido assassinado pelos monges.

A atividade filosófica de João Escoto pode ser dividida em dois períodos. No primeiro período, Escoto Erígena inspirou-se sobretudo nos Padres latinos, isto é, em Gregório Magno, Isidoro e especialmente em Santo Agostinho. A este período pertence o texto contra o monge Godescalco: De divina praedestinatione. Num segundo período, Erígena sofre a influência dos teólogos e filósofos gregos. Em 858, traduz os textos do Pseudo-Dionísio o Areopagita; em 864, os Ambígua de Máximo o Confessor e o texto De hominis opificio de Gregório de Nisa. Estes trabalhos guiaram-no na criação da sua obra-prima, a De divisione naturae, em cinco livros. Escrita em forma de diálogo entre mestre e aluno, é o primeiro grande texto especulativo da Idade Média.

Esta obra denuncia já o carácter da investigação escolástica: o método apriorístico ou dedutivo que o autor maneja com grande mestria. As glosas de Erígena aos Opuscula theologica de Boécio, são o comentário mais antigo aos escritos teológicos de Boécio. Muito conhecidas na Idade Média, mas nunca impressas, deviam ter sido escritas nos últimos anos da sua vida, à volta de 870, e apresentam com a Divisio naturae a mesma relação que existe entre as Retraciationes e as outras obras de Santo Agostinho.

A cultura e capacidade especulativa de João Escoto colocam-no acima do nível dos seus contemporâneos. Não só conhece o grego e o traduz, como adquire dos escritores e do espírito grego, grande liberdade tanto no campo da investigação como da orientação especulativa.