Estes vestígios a que chamamos documentos observa-os o historiador diretamente, não há dúvida, mas depois nada mais pode observar; procede daí em diante por meio de raciocínio, tentando concluir, tão corretamente quanto possível, dos vestígios para os fatos. O documento é o ponto de partida; o fato passado, o ponto de chegada [Em todas as ciências o fato é «o ponto de checada», o termo de uma elaboração feita a partir dos dados de observação, que, para o historiador, são os documentos e a sociedade em que vive.]. Entre este ponto de partida e este ponto de chegada tem de passar-se por uma série de raciocínios, encadeados uns nos outros, em que as oportunidades de erro são inumeráveis. […] É o domínio da crítica. Tentemos esboçar primeiro, muito sumariamente, as suas linhas gerais e as suas grandes divisões.
I. Podemos distinguir duas espécies de documentos. Às vezes o fato passado deixou um vestígio material (um monumento, um objeto fabricado). Outras vezes, e é o caso mais frequente, o vestígio do fato é de ordem psicológica: é uma descrição ou uma relação escritas [Nem sempre: em certas épocas os documentos escritos são comparativamente muito escassos; em outras nem sequer existem.].
O primeiro caso é muito mais simples que o segundo. Existe, com efeito, uma relação fixa entre certas marcas ou sinais materiais e as suas causas, e esta relação, determinada por leis físicas, é bem conhecida. O vestígio psicológico, pelo, contrário, é puramente simbólico: não é o próprio fato; não é mesmo a impressão imediata do fato no espírito da testemunha; é somente um sinal convencional da impressão produzida pelo fato no espírito da testemunha. Os documentos escritos não têm, pois, valor em si mesmos, como os documentos materiais; só o têm como sinais de operações psicológicas, complicadas e difíceis de deslindar. A imensa maioria dos documentos que fornecem ao historiador o ponto de partida dos seus raciocínios não passam, em suma, de vestígios de operações psicológicas.
Posto isto, para concluir de um documento escrito o fato que foi sua causa longínqua, quer dizer, para saber a relação que liga o documento ao fato, cumpre reconstituir toda a série de causas intermediárias que produziram o documento. Devemos imaginar toda a cadeia de atos efetuados pelo autor do documento a partir do fato observado por ele até ao manuscrito (ou impresso) que temos hoje sob os olhos. Essa cadeia, percorremo-la em sentido inverso, começando pela inspeção do manuscrito (ou impresso), para concluir no fato antigo. Tais são o fim e o processo da análise crítica.
Primeiro observa-se o documento. Está ele tal como quando foi produzido? Não se deteriorou depois? Procura-se determinar como foi elaborado, a fim de o reconstituir, se for preciso, no seu teor original e determinar-lhe a proveniência. Este primeiro grupo de pesquisas prévias, que diz respeito à letra, à língua, às formas, às fontes, etc., constitui o domínio da crítica externa ou crítica de erudição. Em seguida intervém a crítica interna: procura ela, mediante raciocínios por analogia, na maior parte inspirados na psicologia geral, imaginar os estados psicológicos por que o autor do documento passou. Sabendo o que o autor disse, pergunta-se: 1.°, que quis ele dizer; 2.°, se acreditou no que disse; 3.°, se havia fundamento para crer no que acreditou. Nesta altura encontra-se o documento reduzido a um ponto em que se assemelha a uma das operações científicas pelas quais se constitui toda ciência objetiva: torna-se uma observação; basta agora tratá-lo segundo o método das ciências objetivas. Todo documento vale exatamente na medida em que, após ter-se estudado a sua gênese, o reduzimos a uma observação bem feita.
II. Duas conclusões se tiram do que precede: complexidade extrema, necessidade absoluta da crítica histórica.
Comparado com os outros sábios, encontra-se o historiador numa situação muito delicada. Não só jamais lhe é dado, como ao químico, observar diretamente os fatos, mas raras vezes os documentos de que tem de servir-se reproduzem observações precisas. Não dispõe desses relatórios de observações cientificamente elaborados que, nas ciências constituídas, podem substituir e substituem as observações diretas. Está na situação do químico que conhecesse uma série de experiências apenas pelo testemunho do seu servente de laboratório. O historiador é obrigado a tirar proveito de testemunhos muito grosseiros, com que nenhum sábio se contentaria.
As precauções a ter na utilização de tais documentos são tanto mais necessárias quanto é certo constituírem eles os únicos materiais de que dispõe a ciência histórica: importa, evidentemente, eliminar os que não têm valor algum e distinguir nos outros o que lá houver corretamente observado [Todo documento tem interesse, maior ou menor. Os erros, as imprecisões, assim como os depoimentos que tendenciosamente deturpam ou escondem o que é ou supomos ser a verdade dos fatos, são, por vezes, altamente significativos, nomeadamente em psicologia histórica.].
Tanto mais necessárias são, ao mesmo tempo, as advertências a este respeito quanto a inclinação natural do espírito humano é não tomar precaução alguma e proceder confusamente em matéria em que a mais exata precisão seria indispensável. [Langlois e Seignobos, Introduction aux Études Historiques, pp. 44-49.]