deuses

O Projeto [v. projeto], seja ou não, ele próprio, o argumento do drama cultural que representamos sem conhecê-lo, sem saber, portanto, como se atou e desatará o nó da intriga, compromete o homem com o mundo e o mundo com o homem. Bem se vê, todavia, que o compromisso assumiu formas diversas, em tempos e lugares diversos. Mas, sendo assim, não teremos de admitir que o Projeto não é singulare tantum? Que tantos haja quantos os dramas representados e representáveis? É o que parece e nos parece, desde que desviemos a nossa mira da Cultura [v. cultura] para as culturas que a Cultura encobre, exercendo, para isso, um esforço por despotenciá-las, o qual, por sua vez, a envolve numa aura que a história «universal» decerto não lhe recusou. O triunfo da Cultura sobre as culturas já se encontrava incluso no Projeto — o mais recente de todos os Projetos, mas não o único Projeto. Esse seria o único, só pela ausência dos deuses. Porque já não é um deus, [40] entre outros, aquele nexo de homem e mundo, de que antes falávamos, tão pouco conseguindo dizer. Tornar-se-ia mais fácil dizer coisa que valha ser dita se pusermos em deuses a mediação entre homem e mundo? Se um deus efetivamente os correlaciona? Se um deus intervém como persona dramatis, não como qualquer das duas que passam por conhecidas, mas como aquela em que ambos se reconhecem, esta enquanto homem, aquela enquanto mundo? Mas não caímos, assim, muito mais fundo no abismo sem fundo? Não se pretenderá introduzir como dado outra incógnita, a mais incógnita de todas as incógnitas do problema? Em transcurso, digamos que não se pode ter por certo que a Cultura goze do privilégio de se identificar com um Projeto que se caracterize pela ausência dos deuses, considerados, estes, como modalidades do nexo dramático entre homem e mundo. A ausência poderia não ser mais do que sinal externo de presença envolvida e encoberta, de deuses que a ninguém ocorrendo designar como tais conferem ao Projeto a aparência da sua distinção absoluta. De um lado estariam os Projetos em que deuses põem e dispõem do homem e do mundo, e, do lado oposto, o Projeto em que homem e mundo parecem dispor dos deuses, a ponto de que nem se possa falar deles sem incorrer no risco de negar-lhes a vigência, e de, negando-lha, querer sair desse sem-saída que é a Cultura, superfície regrada por todos os caminhos do pensar pensado ou pensável. Aguardemos a oportunidade de tentar descobrir o nome dos deuses que já não são deuses, ou que não parecem sê-lo. Por ora, só naqueles, nos que sempre assim foram denominados, incidirá a nossa atenção. [EudoroMito:40-41]


Depois de relatar que os persas não têm “imagens de deuses, nem templos nem altares, e consideram insensatas essas coisas”, Heródoto (i. 131) passa a explicar que isso demonstra que eles “não acreditam, como os gregos, que os deuses sejam anthropophyeis, de natureza humana”, ou, poderíamos acrescentar, que os deuses e os homens tenham a mesma natureza. Conferir também Píndaro, Carmina Nemaea, vi. [ArendtCH, 3, Nota]


Parece bastante surpreendente que os deuses homéricos só ajam no tocante aos homens, governando-os de longe ou interferindo nos assuntos deles. Além disso, os conflitos e as lutas entre os deuses parecem resultar principalmente de seu envolvimento nos assuntos humanos ou de sua conflitante parcialidade em relação aos mortais. O resultado é um enredo no qual homens e deuses atuam em conjunto, mas a trama é estabelecida pelos mortais, mesmo quando a decisão é tomada na assembleia de deuses no Olimpo. Creio que o erg’ andron te theon te, de Homero (Odisseia, i. 338), indica essa “cooperação”: o bardo canta feitos de deuses e homens, não histórias de deuses e histórias de homens. Do modo análogo, a Teogonia de Hesíodo trata não dos feitos dos deuses, mas da gênese do mundo (116); narra, portanto, como as coisas passaram a existir por meio da procriação e da parturição (constantemente repetidas). O cantor, servo das Musas, canta “os feitos gloriosos dos homens antigos e os deuses bem-aventurados” (97 ff.), mas em parte alguma, ao que eu saiba, os feitos gloriosos dos deuses. [ArendtCH 4, Nota]


Parece-nos estranho que Coulanges, com a sua ênfase unilateral sobre as deidades da região dos mortos na religião grega e romana, tenha deixado passar despercebido o fato de que esses deuses não eram meros deuses da morte e o culto não era um mero “culto da morte”, e sim que essa antiga religião terrena servia à vida e à morte como dois aspectos do mesmo processo. A vida surge da Terra e a ela retorna; o nascimento e a morte são apenas dois estágios diferentes da mesma vida biológica sobre a qual os deuses subterrâneos têm controle. [ArendtCH, 5, Nota]