determinações naturais

[…] declaração radical e estupefaciente de Paulo aos Gálatas: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (3,28).

Quanto às quatro primeiras negações, aceitá-las-emos após refletir, e isso apesar de seu caráter bastante estranho. Esta estranheza se deve a que cada uma dela implica a rejeição do visível. Pois, enfim, este homem que está aqui é precisamente um grego, e aquele lá um judeu. Este é um senhor, e aquele um servo. Porque de tais caracteres, a despeito de sua importância evidente, social ou espiritual, a despeito desta evidência mais ainda, são subitamente privados de significação, tidos ao menos por secundários? Por razões de ordem ética, dir-se-á. É porque temos a ideia ética de um homem cuja realidade essencial não pode reduzir-se à grecidade ou à judeuidade, nem, menos ainda, a uma condição social qualquer, que recusamos, com efeito, a sujeitá-lo a essa condição. Mas de onde vem esta ideia que nos faz aceitar, ainda que a contragosto, tal desqualificação súbita das evidências mundanas? Se se trata de uma resposta histórica, deve-se dizer: do próprio cristianismo. Se se trata de uma resposta filosófica, não há outra senão esta: a ideia de um homem ético irredutível às determinações mundanas e incompreensível a partir delas não pode vir senão de sua essência invisível – de sua condição de Filho gerado na Vida absoluta e que tem dela sua verdadeira realidade.

Mas são as duas últimas negações que por seu caráter extraordinário nos mergulham na incerteza. Ser um homem ou ser uma mulher, essas qualidades do “ser humano” não são nada além de determinações exteriores, visíveis, “naturais”? Não é, ao contrário, a realidade mais interior de tal ser, sua sensibilidade, sua afetividade, sua inteligência, seu modo de se relacionar com os outros e consigo mesmo, o que se encontra afetado de alto a baixo segundo este “ser” seja homem ou mulher? Ora, a extraordinária declaração de Paulo não pode ser atribuída à singularidade ou a excessos de seu pensamento pessoal. Neste ponto essencial como em tantos outros, trata-se do ensinamento de Cristo, que ele não pôde ouvir, mas que [348] todavia retoma de modo rigoroso (contrariamente à tese segundo a qual o cristianismo que conhecemos seria uma espécie de fabricação do próprio Paulo). Aos saduceus que, para contestar a ressurreição, perguntam a Cristo, a respeito dos sete irmãos que morrem um após outro sem deixar filho e que desposaram todos, segundo a Lei, a mesma mulher: “Essa mulher, na ressurreição, de qual deles vai se tornar mulher? Pois todos os sete a tiveram por mulher”, Cristo responde, identificando os ressuscitados com anjos, que “não tomam nem mulher nem marido”, “são semelhantes aos anjos e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição” (Lucas 20,33-36).

A determinação do homem enquanto Filho de Deus abole nele a determinação da masculinidade e da feminilidade? Ou esta abolição só concerne ao “Filho de Deus” no sentido pleno, àquele que se identificou com a Vida absoluta e que, nascido uma segunda vez, ressuscitado, se tornou eterno como ela? Ou ainda, referida à ressurreição e ao Céu, tal abolição da diferenciação sexual não é, como esta ressurreição e como este Céu, um artigo de ? Ou ainda: a tese radical de Paulo que faz eco à resposta não menos radical de Cristo aos saduceus – a afirmação de que a realidade essencial do ser humano se situa aquém ou além da diferenciação sexual –, essa afirmação, em vez de decorrer de modo exclusivo da Fé, pode ser estabelecida filosoficamente, não por uma filosofia especulativa de resultados sempre problemáticos, mas por uma fenomenologia capaz de formular proposições de ordem apodictica? Trata-se pois de saber se a verdade essencial do ser humano, posta a nu condição de Filho, deixa fora dela a determinação sexual, autorizando assim as declarações aparentemente extravagantes de Paulo e do próprio Cristo.

A análise fenomenológica da condição de Filho levada a efeito ao longo de toda esta obra nos permite responder com certeza à questão evocada, questão com respeito à qual vai ser mostrado, por outro lado, que é de interesse decisivo para a inteligência da relação com o outro que nos ocupa agora. O afastamento por Paulo na definição de homem das determinações grego, judeu, senhor, escravo e enfim [349] homem ou mulher não é radical senão em proporção ao peso e, se podemos dizê-lo, à seriedade de tais determinações. Para tornarmos o propósito de Paulo menos inverossímil, simulamos, num primeiro tempo, considerar as determinações em questão por seu aspecto empírico e, assim, como puramente mundanas. E é de fato verdade que as propriedades enumeradas se mostram no mundo. É dessa manifestação visível que elas têm, aos olhos do senso comum, sua realidade. Mas não é esse o caso. Longe de poderem reduzir-se a seu aparecimento mundano, as determinações afastadas por Paulo pertencem à vida; é desta que elas têm sua realidade, é porque são viventes que são reais. Ser grego ou judeu não se limita de modo algum à apresentação de caracteres étnicos objetivos, que, para dizer a verdade, quase não existem ou não existem de todo. Ser grego ou judeu é encontrar-se determinado no plano da sensibilidade, da afetividade, da inteligência, dos modos de agir, subjetivamente, portanto, segundo modalidades vitais essenciais – e tudo isso como resultado de pertencer a uma cultura que também só se pode definir subjetivamente, por habitus fundamentais da vida transcendental.

Ser senhor, do mesmo modo, trate-se de um senhor do tempo de Paulo ou de um patrão de hoje, de um servo ou de um operário, é ser moldado por modalidades concretas da práxis, que, enquanto práxis real, individual, subjetiva, não é senão uma determinação do agir vivente. Ser um homem, enfim, ou uma mulher, é completamente diferente de apresentar certo aspecto exterior, propriedades naturais reconhecíveis, como um corpo objetivo sexualmente diferenciado. Aqui, ainda, o que se diz “natural” ou “objetivo” só pode definir-se a partir de certo número de experiências subjetivas transcendentais, como, por exemplo, o desdobramento interior e vivido da “sexualidade” feminina e, mais geralmente, o desdobramento interior de um corpo que é originalmente, na própria possibilidade de seu “agir” e de seu “sentir”, um corpo subjetivo e vivente. Porque então Paulo pensa poder afastar tais determinações maximamente “reais” do que constitui a realidade verdadeira e a condição do homem? [350]

Porque esta condição é a de um Filho. Cada uma das determinações reais que são as de um Filho não é tal – real, vivente – senão dadas a elas mesmas na autodoação da Vida absoluta que dá este Filho a ele mesmo. E isso vale para a determinação, todavia essencial, que faz de cada um dos Filhos da Vida, aqui embaixo, neste mundo, um homem ou uma mulher. É então que a definição cristã descobre sua profundidade infinita. Se escrutamos, na sua realidade subjetiva transcendental mais essencial, o que constitui, em cada homem e em cada mulher, sua sensibilidade masculina ou feminina, com suas modalidades múltiplas e diferenciadas que impregnam para cada um e cada uma deles sua vida inteira, onde encontraremos algo comum a uma e à outra, a esta sensibilidade masculina ou feminina – algo comum que permita enfim a Paulo, falando do ser humano, proferir sua declaração estupefaciente: “nem homem nem mulher”? Esta verdade essencial comum não é nada mais nem nada menos que o que habita cada determinação tanto da masculinidade como da feminilidade, a saber, o fato de que esta determinação é dada a ela mesma e que esta doação a ela se cumpre do mesmo modo, é a mesma tanto para o homem quanto para a mulher. É, para todo “ser humano” – homem ou mulher –, a sua condição de Filho: de vivente dado a ele mesmo na autodoação da Vida absoluta. É esta autodoação que é o Idêntico em cada um: Cristo, Deus. Nem homem nem mulher: Filho de Deus.

(Michel Henry, MHSV)