composto humano

Quando digo “minha” natureza, em particular, entendo só a complexão ou a agregação de todas as coisas que Deus ijie deu.

Ora, o que esta natureza me ensina mais expressa e sensivelmente é que tenho um corpo, o qual, quando sinto dor, está indisposto, e quando tenho os sentimentos de fome ou sede, necessita comer ou beber, etc. Portanto, não devo duvidar de que há algo de verdade nisto.

Ensina-me também a natureza, por meio desses sentimentos de dor, fome, sede, etc, que não estou metido em meu corpo como um piloto em seu navio, mas tão estreitamente unido e confundido com ele, que formo como um só todo com meu corpo. Pois se assim não o fosse, eu não sentiria dor quando meu corpo está ferido, visto que sou somente uma coisa que pensa; perceberia a ferida por meio .do entendimento, como um piloto percebe, por meio da vista, o que se quebra em seu navio. E quando meu corpo necessita comer ou beber, eu teria um simples conhecimento desta necessidade, sem que dela me notificassem confusos sentimentos de fome ou sede; pois, com efeito, todos esses sentimentos de fome, sede, dor, etc, são apenas certos modos confusos de pensar, que procedem e dependem da íntima união e espécie de mescla do espírito com o corpo.

Além disto, ensina-me a natureza que existem ao meu redor outros corpos, dos quais uns devo evitar e outros procurar. E certamente, visto que sinto diferentes classes de cores, odores, sabores, sons, calor, dureza, etc, infiro que, nos corpos de onde procedem essas diferentes percepções dos sentidos, há algumas variedades correspondentes, embora talvez essas variedades não sejam efetivamente semelhantes às percepções. E visto que algumas dessas diversas percepções dos sentidos são agradáveis e outras desagradáveis, não resta dúvida de que meu corpo, ou dizendo melhor, eu mesmo, em minha integridade, como composto de corpo e alma, posso receber diferentes comodidades e incomodidades dos corpos circundantes. (Descartes – Meditationes de prima philosophia, VI.)