Segundo J.-L. Marion, a crítica nietzschiana confirma sua própria interpretação do cogito, sum como simples “enunciado protocolar” (isto é, “não afirmando nenhuma tese nem enunciando nenhum princípio”); confirma também que, com Descartes, o ego “ascende ao estatuto metafísico de um princípio, na exata medida em que o enunciado protocolar cogito, sum é interpretado como identificação do pensamento com o ser, ou como dedução pelo pensamento da substância ou recondução da substância ao pensamento”. Para Marion, “Substância não se refere aqui ao clássico debate sobre a ‘substantificação’ do sujeito por Descartes; nessa polêmica, substância tem a ver com uma interpretação trivial da οὐσία como ὑποκείμενον, substratum, supósito, portanto, em última análise, matéria; ao contrário, substância é entendida aqui como no sentido de Wesen, Seiendheit, entidade do ente. Coloca-se então a pergunta: como, a partir do pensamento em ação sob a figura do ego no cogito, sum, pode-se formular uma doutrina da substância? Em outras palavras: como o ego pode constituir uma ontologia?”. Deixando provisoriamente de lado o debate sobre a “substantificação do sujeito” em Descartes, e o impacto da distinção entre os dois sentidos de οὐσία sobre a delimitação da questão cartesiana autêntica, apoiada na (pela) exegese nietzschiana do “enunciado protocolar” [NOTA ABAIXO], nos preocuparemos mais aqui com aquilo que sugere a diferença ou o jogo das traduções do § 17 de Jenseits Gut und Böse [v. isso pensa]: Como se passa de “alguém” para “sujeito”? De “sujeito” para “agência”? Como explicar a equação formulada pelo gesto tradutor: Einer = sujeito = agency (= eu)?
NOTA: Voltaremos a esse ponto no volume III, seguindo, particularmente, uma segunda pista traçada por J.-L. Marion: a discussão da interpretação dita “canônica” do cogito cartesiano. Em Questions cartésiennes II, Marion afirma de fato que se, em um primeiro momento, Nietzsche recusa tal interpretação “tanto mais radicalmente” que, ao contrário de “todos seus predecessores” (entre os quais Kant e Hegel), “ele não dirige sua crítica à identidade imediata entre ego cogito e sum, mas à ligação entre o ego e o cogito”, no final ele não duvida “nenhum instante que Descartes tenha concebido seu ego cogito, ergo sum como identidade imediata e tautológica do ego e de suas cogitationes”. Em sua análise do primeiro ponto, J.-L. Marion mostra, no entanto, toda a profundidade (e o impacto histórico) da contraproposição nietzschiana: o “hábito gramatical” denunciado em A Vontade de Potência nada mais é que um “ídolo metafísico que supõe [o grifo é meu] uma causa desde que se possa imaginar um efeito”, enquanto “a descrição exata do processo do pensamento estabelece que ele se desenvolve sem ou apesar dos atos (ou ilusões de atos) do pretenso sujeito pensante”. É dessa suposição de uma causa de meus pensamentos, que não seria senão ego, “eu” ou “eu mesmo”, que se trata de fazer a arqueologia. Contudo, desse ponto de vista, a existência de dois modelos cartesianos revelada por Marion, o “modelo identitário a = a” do ego cogito, ergo sum “privilegiado pela interpretação canônica” e o “modelo ilocutório, onde o ego só atinge sua existência primordial em virtude de um pensamento que o pensa antes”, requer ela própria um duplo traçado: o do modelo identitário e o do modelo ilocutório. O primeiro foi objeto de muitos estudos. O segundo está por ser realizado inteiramente. Espera-se mostrar, nos volumes II e III, que a crise averroísta, em grande medida, contribuiu problematicamente para a emergência de alguns de seus traços constitutivos, particularmente a afirmação de que “o ego não atinge a categoria de primeiro pensante, portanto de ‘primeiro princípio’ a não ser na estrita medida em que se descobre como primeiro pensado”. Sobre tudo isso, cf. J.-L. Marion, “L’altérité originaire de l’ego, Meditatio 11, AT VII, 24-25”, em Questions cartésiennes II, pp. 11, 12 e 43-47. [Libera AS:53-55]