O ponto de partida da dúvida é sempre uma fé. Uma fé (uma “certeza”) é o estado de espírito anterior à dúvida. Com efeito, a fé é o estado primordial do espírito. O espírito “ingênuo” e “inocente” crê. Ele tem “boa-fé”. A dúvida acaba com a ingenuidade e a inocência do espírito e, embora possa produzir uma fé nova e melhor, esta não mais será “boa”. A ingenuidade e a inocência do espírito se dissolvem no ácido corrosivo da dúvida. O clima de autenticidade se perde irrevogavelmente. O processo é irreversível. As [10] tentativas de espíritos corroídos pela dúvida de reconquistar a autenticidade, a fé original, não passam de nostalgias frustradas. São tentativas de reconquistar o paraíso. As “certezas” originais postas em dúvida nunca mais serão certas autenticamente. A dúvida metodicamente aplicada produzirá, possivelmente, novas certezas, mais refinadas e sofisticadas, mas essas novas certezas nunca serão autênticas. Conservarão sempre a marca da dúvida que lhes serviu de parteira. [FlusserDuvida:9-10]