Há uma enorme diferença entre o espírito e o corpo; o corpo, por sua natureza, é sempre divisível, ao passo que o espírito é inteiramente indivisível. Com efeito, quando considero o espírito, isto é, a mim mesmo, enquanto sou apenas uma coisa que pensa, não posso distinguir em mim partes, mas pelo contrário conheço e concebo muito claramente que sou uma coisa absolutamente una e inteira; e ainda que todo o espírito apareça unido a todo o corpo, quando um pé ou um braço ou qualquer outra parte são separados do resto do corpo, conheço muito bem que nada foi subtraído a meu espírito; tampouco se pode dizer propriamente que as faculdades de querer, sentir, conceber, etc, são partes do espírito, pois uno e o mesmo espírito é o que por inteiro quer, sente e concebe, etc. Porém no corporal ou extenso ocorre o contrário; pois não posso imaginar nenhuma coisa corporal ou extensa, por pequena que seja, que meu pensamento não desfaça em pedaços ou que meu espírito não divida facilmente em várias partes, e, por conseguinte, a conheço como divisível. Bastaria isto para ensinar-me que o espírito ou alma do homem é inteiramente diferente do corpo, se já não o houvesse apreendido antes.
Noto também que o espírito não recebe imediatamente a impressão de todas as partes do corpo, mas só do cérebro, ou talvez inclusive das partes menores deste, a saber: daquelas partes em que se exercita a faculdade que chamam sentido comum, a qual, sempre que está disposta da mesma maneira, faz o espírito sentir a mesma coisa, ainda que possam estar diversamente dispostas as outras partes do corpo, como o demonstram muitíssimas experiências que aqui não é necessário referir. (Descartes – Meditationes de prima philosophia, VI.)
Ora, que o espírito, que é incorpóreo, possa fazer o corpo mover-se, razoamento algum nem comparação alguma tirada das demais coisas nô-lo mostra, mas uma certíssima e evidentíssima experiência diária; pois é esta uma dessas coisas que se conhecem por si mesmas, e que obscurecemos quando queremos explicar por outras. (Descartes – Carta a Arnauld, 29-VII — 1648).