bonum commune
salus publica
Toda coletividade, seja ela sociedade ou comunidade, tem uma missão peculiar, para o desempenho da qual existe, missão que lhe confere seu cunho e princípio formal e que, por assim dizer, é a sua alma. Tal missão deve consistir evidentemente num bem (ou conjunto de bens) que deve ser conseguido mediante a atividade do ente coletivo, e de maneira que não só redunde em benefício deste ente enquanto tal, como também beneficie, em última instância, a todos os seus membros. Este bem (ou conjunto de bens) recebe o nome de “bonum commune”, “bem comum”. Nele se verifica uma relação recíproca: toda perfeição do conjunto significa um proveito parp os membros; e, vice-versa, aumentando e consolidando-se o aperfeiçoamento destes, aumenta a capacidade operativa do conjunto . . .
(1) Muitos pretendem que por “bem comum” se deva entender preferente-mente a perfeição dos membros; contudo a coletividade existe primariamente para ajudar estes a conseguir dita perfeição. Assim compreendido, o bem comum da família consistiria em que todos os seus membros cheguem a ser membros realmente perfeitos da comunidade familiar, providos de todos os bens humanos que enriquecem a vida de família. E o bem comum do Estado, enquanto coletividade geral, natural e perfeita, — compreendido no mesmo sentido — consistiria em levar os cidadãos à perfeição global própria de sua condição humana. — Do bem comum, entendido na acepção exposta, falam sobretudo os autores da Escola tomista; para o diferenciarem do bem comum (2), denominam-no simplesmente bem comum, ou falam do “bem global da natureza humana”.
(2) Os mais dos autores, especialmente os que professam o solidarismo, ou dele se abeiram, entendem imediatamente por bem comum um estado ou condição da coletividade, e neste sentido caracterizam-no como “valor organizador”. A coletividade deve ser, antes de mais nada, cabal ou acabada, isto é, deve estar construída de maneira correspondente ao cumprimento de sua missão peculiar (o exército deve possuir estrutura diferente da que possui uma empresa de transportes). A esta perfeita construção da coletividade pertence não só o que denominamos estrutura ou organização em sentido estrito, como também a dotação dos meios indispensáveis para o cumprimento de sua missão e para a atuação da coletividade sobre seus membros, atuação de que se vale para os conduzir a uma colaboração eficaz.
Se pensarmos não tanto numa coletividade particular, quanto na vida humana da coletividade em geral, infere-se, de acordo com esta última acepção, a definição que habitualmente se dá: conjunto de todas as pressuposições e instituições de caráter público e geral, necessárias para que os indivíduos, como membros da coletividade, cumpram seu destino terreno e, mediante a atividade própria, possam tornar efetivo seu bem-estar na terra. Assim sendo, o bem comum é um estado ou situação social que, acima de tudo, garante a cada um o lugar que lhe compete na comunidade, lugar em que pode desdobrar as faculdades que lhe foram dadas por Deus para alcançar sua perfeição corporal, intelectual e moral e, servindo a comunidade, tornar-se, ao mesmo tempo, mais rico de bens exteriores e interiores. — Quais os elementos que fazem parte, em cada caso, do bem comum de uma coletividade particular, é assunto que se deve determinar de acordo com suas peculiares tarefas e finalidades.
A linguagem da vida política designa como bem comum (= bem geral, sem mais) o bem da comunidade estatal ou pública, equiparando-o ao “interesse público”. Contudo, do ponto de vista da filosofia social, deve afirmar-se que toda comunidade, embora privada, tem seu bem comum peculiar, o qual há-de servir de norma ou ideal na apreciação do progresso de dita comunidade na realização do mesmo.
Em virtude do bem comum (justiça), os membros da comunidade são devedores a esta daquilo que se apresenta como motivado ou positivamente exigido por ele. — Nell-Breuning [Brugger]
Esta questão anda intimamente ligada ao problema da natureza da sociedade humana agrupada em estados que podem, ou devem proporcionar aos seus membros um bem ou série de bens para propender à sua subsistência, bem-estar e felicidade. Para Platão (REPÚBLICA), o bem comum transcende os bens particulares, pelo menos na medida em que a felicidade do Estado deve ser superior, e até certo ponto independente da felicidade dos indivíduos. Deste modo, a questão do bem comum carece de uma dimensão essencial, isto é, de que modo participam os membros do Estado no bem comum. Aristóteles (POLÍTICA)encarregou-se deste problema e afirmou que a sociedade organizada num Estado tem de proporcionar a cada um dos membros o necessário para o seu bem-estar e felicidade como cidadãos. Por isso se costuma dizer que foi Aristóteles o primeiro que tratou formalmente o problema do bem comum. Foi, contudo, S. Tomás que o esclareceu amplamente (SUMA TEOLÓGICA), ao afirmar que a sociedade humana como tal tem fins próprios que são “fins naturais”, que há que atender e realizar. Os fins espirituais e o bem supremo não são incompatíveis com o bem comum da sociedade como tal; pertencem a outra ordem. Há que estabelecer como se relacionam as duas ordens mas sem destruir uma delas. Perante a tendência para subordinar demasiado radicalmente a ordem natural e temporal à ordem divina e espiritual, muitos escritores modernos adoptaram o ponto de vista contrário, considerando o bem comum do estado o último bem possível. [Ferrater]