Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de pensamento — literário, teológico ou filosófico — sobre o fenômeno do mal. Aprendemos que o mal é algo demoníaco; sua encarnação é Satã, “um raio caído do céu” (Lucas 10:18), ou Lúcifer, o anjo decaído (“O demônio também é um anjo”, Unamuno), cujo pecado é o orgulho (“orgulhoso como Lúcifer”), isto é, aquela superbia de que só os melhores são capazes: eles não querem servir a Deus, mas ser como Ele. Diz-se que os homens maus agem por inveja; e ela pode ser tanto ressentimento pelo insucesso, mesmo que não se tenha cometido nenhuma falta (Ricardo III), quanto propriamente a inveja de Caim, que matou Abel porque “o Senhor teve estima por Abel e por sua oferenda, mas por Caim e sua oferenda ele não teve nenhuma estima”. Ou podem ter sido movidos pela fraqueza (Macbeth). Ou ainda, ao contrário, pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade (“Odeio o Mouro: o que me move é o coração”, de lago; o ódio de Claggart pela “bárbara” inocência de Billy Budd, um ódio que Melville considerou “uma depravação com relação à natureza humana”); ou pela cobiça, “a raiz de todo o mal” (Radix omnium malorum cupiditas). Aquilo com que me defrontei, entretanto, era inteiramente diferente e, no entanto, inegavelmente factual. O que me deixou aturdida foi que a conspicua superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou motivos, em quaisquer níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente — ao menos aquele que [6] estava agora em julgamento — era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más, e a única característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão. No âmbito dos procedimentos da prisão e da corte israelenses, ele funcionava como havia funcionado sob o regime nazista; mas quando confrontado com situações para as quais não havia procedimentos de rotina, parecia indefeso e seus clichês produziam, na tribuna, como já haviam evidentemente produzido em sua vida funcional, uma espécie de comédia macabra. Clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência. Se respondêssemos todo o tempo a esta exigência, logo estaríamos exaustos; Eichmann se distinguia do comum dos homens unicamente porque ele, como ficava evidente, nunca havia tomado conhecimento de tal exigência. [ArendtVE:5-6]