Bacon

BACON (Francis), barão de Verulamo, chanceler da Inglaterra e filósofo (Londres 1561 — id. 1626). Filho do guarda dos Selos no reinado de Elizabeth I, fêz estudos de direito e tornou-se advogado da Coroa. Acusado de venalidade em 1621, perdeu seu cargo e foi excluído da vida pública. Consagrou seus últimos anos à ciência e à filosofia. Autor de Ensaios de moral e de política (1597), é célebre sobretudo por haver fundado a epistemologia moderna e formulado o método da ciência experimental e indutiva. Esta nova lógica descreve os três momentos da pesquisa científica: 1.° a observação dos fatos; 2° o estabelecimento de uma hipótese por indução; 3.° a verificação experimental da hipótese através do maior número de fatos. Foi Bacon quem preconizou uma organização racional da experimentação, constituída por “tábuas de presença”, “de ausência” e “de gradações”, destinadas a isolar as verdadeiras causas de um fenômeno. Sua obra principal é o Novum organum scientiarum (Novo método das ciências) [1620], que define todos os princípios que são ainda os de nossa epistemologia. [Larousse]


Francis Bacon (1561-1626) era natural de Londres, obteve o título de Lord de Verulam, chanceler do Parlamento inglês. Acusado de suborno, foi condenado à prisão, sendo agraciado, depois, por seu renome de valor. Em filosofia é mais conhecido por Bacon de Verulam.

Além de sua obra jurídica, política, econômica e social, deve-se ressaltar sua obra filosófica, que teve influência ponderável no desenvolvimento da filosofia. Bacon procurou mostrar o erro dos métodos racionalistas antigos e a necessidade de interrogar a experiência, o que aliás, diga-se de passagem, era aconselhado pelos escolásticos maiores. Combateu o método abstrato dos aristotélicos, (que desvirtuavam o pensamento de seu mestre), vindo sim, historicamente, corresponder à necessidade da Europa de então, já em plena marcha para o experimental e o científico destes últimos séculos. Não foi propriamente um sistemático. Deu ao conhecimento humano um método, em seu livro Novum Organum, uma das obras maiores da humanidade. Contemporâneo de Descartes, Galileu, Pascal, contribuiu para o desenvolvimento da ciência prática. Sua intenção era edificar um movimento à ciência prática, uma “Instauratio Magna”, e as obras deixadas não passam de capítulos desse grande empreendimento, que a morte impediu.

Lutou por dissipar a confusão então existente entre Ciência e Filosofia, através de seu tratado “Progresso das Ciências”.

Nessa obra, estabeleceu novo método de substituição da hipótese pela observação, cujo método é exposto em “Novum organum”, e em sua “De dignitatis et argumentis Scientiarum”.

Preconizava a observação como sequência da finalidade que emprestava à ciência: isto é, utilidade prática, domínio do homem sobre o universo. Expunha seu método que consistia primeiramente na observação, depois na indução, e estabeleceu regras do método experimental e indutivo, em suas categorias de presença, ausência e grau.

É sua doutrina um método positivista de conhecer, o qual se opõe à predominância dos ídolos em nosso entendimento.

Essa doutrina influiu no empirismo inglês, tendo Bacon influído no método experimental moderno.

Para realizar o método experimental e para que obtenha bom êxito, é necessário libertar-se dos idola (erros do espírito), que são de quatro espécies: idola tribu, inerente ao gênero humano, que consistem em procurar ver nas coisas uma ordem, humanizando-a, atendendo ao que nos é favorável; idola epecus (ídolos da caverna), que procedem das disposições individuais, preconceitos adquiridos pela educação, costumes e pela leitura; idola fori, os proporcionados pelas confusões da linguagem, das palavras equívocas, confusas, que não correspondem aos objetos reais e idola theatri, os ídolos provenientes do prestígio, de renome, entre os quais Bacon cita o prestígio de Platão e Aristóteles, como os mais perigosos. [MFS]


Nasceu no ano de 1561, em York House, perto de Londres. Era filho de Nicolau Bacon, chanceler de Elisabete, e desde os tempos em que cursava a Universidade de Cambridge veio-lhe a ideia de uma reforma no estudo das ciências. Acompanhou à França o embaixador Paulet e ao morrer-lhe o pai, em 1579, ingressou na escola de direito de Gray’s Inn para seguir a carreira das leis. Pedia muito ao poder, sem obter nada de considerável, e parece que em torno de Elisabete não tomaram muito a sério as suas capacidades políticas. Mas tornou-se amigo de Essex, o amante da rainha, a quem recompensou mal os favores recebidos, e em 1S97 publicou o seu primeiro livro, uma coleção de Ensaios à maneira de Montaigne, mas que não o recordam senão muito de longe, embora se deixe perceber o tom do seu modelo. Sabemos que se submeteu à vergonha de acusar o seu amigo por ocasião do processo que conduziu este infeliz ao cadafalso. Era seu dever de ofício como advogado da coroa, mas há casos em que — seja qual for o risco — é preciso saber abdicar das suas funções.

Atingiu sob Jaime I o apogeu da sua carreira, tornando-se sucessivamente solicitor-general, attorney-general, conselheiro privado, guarda-selos, lorde-chanceler e enfim Barão Verulam. Começou então o declínio e a queda, talvez amplamente merecida. Foi citado em 1621 perante o Parlamento e admitiu a sua culpa. O rei poupou-lhe a prisão. Tentou ainda sem êxito voltar à política, sendo eleito para a Câmara dos Comuns, e procurou conquistar as boas graças do novo rei, Carlos I. Refugiou-se na ciência, a que devia em suma o que tinha de melhor, e morreu em seus domínios a 9 de abril de 1626.

Foi ainda pelas maneiras, pela carreira, pela cultura e pelo feitio intelectual, um homem da Renascença, dessa Renascença que findava e estabelecia o seu balanço de contas. Viveu com o fausto de um grande senhor e soube mostrar-se bom, apesar das suas fraquezas. Estas fraquezas radicavam principalmente no caráter; Bacon não era talhado para herói e esquivou-se covardemente tão logo as circunstâncias exigiram certa coragem. Auxiliou demais a própria fortuna; foi, como diríamos hoje, um arrivista e teve complacências demasiado interesseiras com o poder. Um homem, em suma, que nada teria de extraordinário se não fosse pelo espírito.

O que surpreende, com efeito, é que a par de uma vida completamente mundana e dedicada aos cargos ou aos negócios de estado, tenha levado outra em que a inteligência ocupava o primeiro lugar. Atraído pela ciência, impelido pela curiosidade, impregnado da cultura do tempo, tomou posição entre os pesquisadores e os filósofos que não se contentavam mais com uma filosofia obsoleta. Sonhou com uma revolução nas ciências, revolução que já havia começado; tomou a peito dar à sua época um Aristóteles que seria um Aristóteles às avessas e, nessa empresa audaciosa, ainda se preocupava demasiadamente com o Estagirita. Sua audácia não se estendia à ordem política e moral. Continuava partidário das prerrogativas reais, que pretendia até fortalecer, e manifestava muito pouca simpatia pela Câmara Baixa. Quanto à , aderia à religião tradicional e sua piedade não deixou de ser profundamente sincera.

Não teve talvez a capacidade de erudição dos grandes humanistas e não foi como eles apegado às letras. Na própria ciência, suas indagações não foram muito longe nem eram conduzidas com grande espírito crítico, e já se observou que ele não compreendera Copérnico nem Galileu e que também não vacilava em documentar-se com a História dos animais de Aristóteles ou com a História natural de Plínio. Neste ponto devemos acautelar-nos para não incidir num erro muito fácil. Essa separação ruidosa que se operava ou estava em vésperas de se operar entre a antiga e a nova filosofia não aniquilava aquela radicalmente. Há resquícios de escolástica no próprio Descartes, que a combatia com ferocidade, e, no nosso Bacon, observa-se ainda uma certa confusão entre os dados da véspera e os do dia.

Finalizemos esta exposição preliminar pelas seguintes considerações: existe em Bacon, além de um filósofo, um moralista, e é talvez pelo diapasão deste que o filósofo afine. Mais de uma vez temos a impressão de ler, neste imitador de Montaigne, o próprio Montaigne. Retoma o mito da Atlântida para descrever a sua cidade ideal, essencialmente utilitária. Nada de rigor sistemático, nada que se assemelhe às vastas construções que serão mais tarde edificadas por Leibniz e Spinoza: o que vemos aqui são análises críticas, reflexões morais e até anedotas sobre costumes. A doutrina se deduz por si mesma, e é em primeiro lugar uma doutrina negativa, reveladora de um pensamento em que a preocupação utilitária sobrepuja de muito a preocupação religiosa e a especulação abstrata.

Depois de uma obra em que esboçava com bastante concisão o seu programa, o Valerius Terminus, Bacon publicou em 1605 o Tratado do progresso e do avanço das ciências. Escreveu-o primeiro em inglês, embora o tenha traduzido mais tarde para o latim, tal como sucedeu com os seus Ensaios. Foi nesta última língua, que era ainda a língua universal da ciência e da cultura, que escreveu os livros posteriores, com exceção da História de Henrique VII, da Nova Atlântida e de algumas produções de menor fôlego. A sua obra-prima, em que se ensaiava preludiando-a com diversos tratados pequenos, saiu à luz em 1620 como o título de Novum Organum, em alusão e numa espécie de desafio ao Organon de Aristóteles, que ela pretendia refazer. Foi no ano seguinte que Bacon publicou a História de Henrique VII. Pensava em continuar e refundir as suas obras, projetando um Digesto da legislação inglesa e convertendo o Tratado do progresso e do avanço das ciências num Tratado da dignidade e do avanço das ciências, obra que constituiria a primeira parte de um grande conjunto, a Instaurado magna, cuja segunda parte continuaria sendo o Novum Organum. De uma terceira, de ambição também vasta, só conseguiu dar à estampa uma História dos ventos, em 1622, e uma História da vida e da morte, em 1623. Um derradeiro fragmento do que devia ser na sua intenção uma grande história natural, A floresta das florestas, é póstumo. Bacon ficou, portanto, muito aquém do que prometia. Mas o que conseguiu realizar já é assaz imponente.

A doutrina. — A inteligência procede em seu mecanismo por um movimento duplo. Eleva-se do particular ao geral, depois torna a descer do geral ao particular; passa das coisas às ideias das coisas, dos homens ao Homem, do Homem à natureza do Homem e a certas propriedades que faz derivar daí. Estas operações, em que o leitor já reconheceu a indução e a dedução, não se separam na prática; pelo contrário, interpenetram-se e se completam, e já se observou com acerto que a própria indução é feita à base de dedução e que deduzir também é de certo modo induzir, uma vez que por esse processo se passa de um objeto a outro. Mas o fato é que ambas são as vigas mestras do espírito.

São delicadas e prestam-se com facilidade ao erro. A indução supõe o apanhado dos casos particulares e nunca se está seguro de que esse apanhado seja completo ou de que tenha ido bastante brige, de que um belo dia não se descobrirá algum indivíduo que virá contradizer a limitação imposta a uma espécie, de que um novo fenômeno não virá invalidar a lei inferida de uma série de fenômenos. Grande também é a tentação, quando julgamos estar ha posse de um princípio, de tirar dele as consequências mais arriscadas e mesmo de imaginar os princípios para explicar as consequências. Era sobretudo neste último excesso, armadilha fácil para o espírito humano, que tinha caído a filosofia antiga. Para justificar o concreto, e ao invés de penetrar mais fundo no concreto, ela multiplicara as propriedades e os abstratos. O ópio fazia dormir porque possuía uma virtude dormitiva, e isto dispensava de esmiuçar a composição do ópio.

Para retificar generalizações apressadas e abusivas, convinha pois voltar a uma prática mais sã das operações do espírito e mesmo submetê-las a uma inversão necessária. A filosofia nova, ao contrário da antiga, seria uma filosofia da indução. A indução, com efeito, parte do concreto, do real, trabalha no concreto e no real. Trata-se de não permitir que a dedução torne esse trabalho ilusório e de não passar à generalização enquanto não se tiver esgotado o particular, enquanto não se houver penetrado a fundo na economia do particular. Daí a necessidade, daí a instauração de uma nova disciplina.

Esta disciplina é a da ciência, isto é, a da observação e a da experiência. Os antigos não a ignoravam inteiramente. Mas apressavam-se a passar-lhe por cima, e aliás não dispunham dos elementos necessários para levá-la suficientemente longe. Os modernos tinham sobre eles as vantagens de um conhecimento mais amplo do mundo e da posse de instrumentos que decuplicavam e centuplicavam as possibilidades da observação e da experiência.

Tal era o caminho novo e franco a que aproava a filosofia com Bacon, e isto era declarado explicitamente.

“Resta portanto”, lemos no Novum Organum, “um único método a empregar, método muito simples que consiste, quanto a nós, em levar os homens aos próprios fatos para lhes fazer seguir a ordem e o encadeamento destes; mas os homens, por sua vez, devem impor-se a lei de abjurar temporariamente todas as suas noções e de se familiarizarem com as coisas em si.”

Tal era precisamente o resultado da reforma e nessa “abjuração” exigida já podemos vislumbrar a dúvida cartesiana. As filosofias, aliás, muitas vezes valem principalmente pelo seu lado negativo, pela crítica dos sistemas anteriores, e a de Bacon não fazia exceção à regra. Juntamente com os métodos antigos, atacava no coração mesmo do homem as ilusões de que se nutre, os famosos “fantasmas” (idola).

Há os “fantasmas da tribo” (idola tribus), expressão da natureza intelectual do homem e dos seus vãos esforços para encerrar a realidade nos quadros construídos pela razão ou pela dialética pura; há os “fantasmas da caverna” (idola specus), relacionados com as predileções ou as paixões individuais, como por exemplo o apego medroso ao passado ou a fobia do que o futuro possa trazer de inusitado; há os “fantasmas da praça pública” (idola fori), que são os erros em torno das palavras — erros, muitas vezes, demasiadamente interessados; e há, por fim, os “fantasmas do teatro” (idola theatri), sistemas errôneos dos filósofos, sortilégios dos astrólogos, dos alquimistas e dos magos.

Tudo isso só poderá ser desarraigado por uma filosofia nova, fundada sobre uma nova ciência. Esta ciência será a da natureza, da satureza em seu conjunto, nos pormenores e na totalidade, e da qual a Instauratio magna pretende fazer o gigantesco inventário. Não será mais compreendida nas divisões arbitrárias do trivium e do quadrivium (gramática, retórica, dialéticaaritmética, geometria, astronomia, música), mas classificada segundo as qualidades próprias do homem. À memória corresponderá a história, que não será nada menos que a descrição de todos os fenômenos, e por conseguinte uma história da natureza ao mesmo tempo que uma história do homem; à imaginação corresponderá a poesia, que não somente encantará pela beleza mas ainda será a auxiliar da moral e permitirá, pela interpretação dos mitos, devassar o conhecimento que os antigos possam ter adquirido sobre o mundo. A própria ciência, enfim, constituirá o objeto da razão, essa ciência de muitos ramos oriundos de um único tronco que é propriamente a filosofia. Existe uma ciência de Deus, uma ciência do homem e uma ciência da natureza. Bacon se interessará sobretudo por esta última. Não procederá mais por discussão dialética, como na Idade Média, e jogando com palavras, mas por investigação e atendo-se às coisas; quem decidirá não será mais o silogismo, mas a observação e a experiência.

Do mesmo modo quanto às causas, embora conserve a terminologia antiga: causa material, causa eficiente, causa formal, causa final; escolhe entre elas ou substitui as concepções que estas palavras exprimem por uma concepção própria. Começa por afastar — e isto é significativo — as causas finais, que ele chama “virgens consagradas a Deus” e que “não concebem”, sublinhando-lhes assim a ineficácia p»Jtica. O que lhe interessa não é aonde as coisas vão ou donde vêm. mas a sua maneira de acontecer: o como e não o porquê. Nestas duas palavras se encerra toda a revolução e a diferença radical que separou o mundo moderno do antigo.

É inegável que havia algo de excelente em tudo isto, uma destruição de coisas que mereciam ser destruídas e promessas de uma renovação necessária. Mas, por outro lado, a pesquisa era ainda bastante confusa, uma boa parte dos materiais não era reunida com suficiente espírito crítico; verdades de outrora, verdades de todos os tempos eram mal-compreendidas ou ignoradas, e sobretudo tomava-se um caminho unilateral que nos pusemos a seguir demasiadamente à risca e que devia conduzir-nos a um beco sem saída.

Há duas passagens bem curiosas e características do próprio Bacon. “A contemplação da natureza no tocante às criaturas”, diz ele por um lado, “produz a ciência; mas, no tocante a Deus, produz apenas a admiração, que é uma espécie de ciência abrupta”, porque “se os sentidos manifestam as coisas naturais, velam as coisas divinas.” E alhures: “Toda ciência tem por ponto de partida a experiência e por ponto de chegada a invenção de uma arte.”

E é verdade que Deus está velado sob a natureza e que esta natureza nos enche de admiração por Deus. Mas o que se nega nos trechos acima citados é que Deus possa ser atingido pela razão ou que dela possa ser deduzido de algum modo. Uma vez afastadas, com efeito, as ideias de origem e de fim último, do objeto e da significação do mundo, uma vez que nos limitemos a desmontar o mecanismo deste mundo, todas as provas de Deus se tornam inúteis e ele já não pode ser senão objeto de ou, como ficou dito, de admiração. Assim, Brochard julgou-se no direito de concluir que esta doutrina de Bacon, que se apresenta como uma filosofia da qualidade, é ao invés uma filosofia da quantidade que termina no mecanicismo. Contentemo-nos em defini-la como uma filosofia que abstrai da religião.

E esseponto de chegada”, a “invenção de uma arte”, em que redunda ele senão em afirmar o seguinte: O fim da ciência é a constituição de uma arte que permitirá agir sobre a natureza sem que se tenha a menor preocupação de saber qual o destino desta natureza, qual o seu objeto, e mesmo se ela possui um objeto?

A filosofia de Bacon é uma filosofia empírica e utilitária, e por estas características ela se define e se limita. Basta reler as páginas em que são enumeradas as maravilhas da nova Atlântida. Encontramos descrito aí tudo que se relaciona com o deleite e o conforto: altas torres para a observação dos meteoros, lagos grandes e pequenos para fornecer toda espécie de peixes; “câmaras de saúde” diversamente e proficientemente arejadas, jardins e pomares tão aprazíveis quanto proveitosos, onde a arte faz crescer as plantas mais variadas, parques e cercados onde são criados todos os animais terrestres; cervejarias, padarias, cozinhas aperfeiçoadas, boticas e dispositivos que facultam o exercício de artes mecânicas ainda ignoradas pelos mortais. E isto se alonga durante páginas a fio, até findar por uma elevação a Deus que não aparece aí senão à guisa de bênção final, pois da vida moral ou religiosa nem uma palavra foi dita.

O que falta a esta filosofia é ser uma filosofia, isto é, uma metafísica. Bacon nem sequer chega a formular os problemas essenciais, os da origem do homem, da sua natureza, do seu destino, e não encara senão de um ponto de vista exterior a questão do conhecimento e da consciência. Introduz, como vimos, nesse imenso repertório das ciências em que se esforça por fazer entrar tudo, um princípio de classificação bastante vago e destituído do necessário rigor. Tem razão em apelar para a experiência e em dá-la como complemento e como disciplina da observação, mas essa experiência não se exerce ainda senão em condições bastante precárias e a observação está longe de ter atingido toda a sua finura: Será necessário que Descartes retome pela base esse problema filosófico que, pode-se dizer, nem sequer foi esflorado; e será necessário chegar à nossa época de positivismo, de racionalismo integral ou de marxismo para ver a filosofia integrada na tradição baconiana, isto é, a uma doutrina que encara o homem exclusivamente em função de si mesmo, nesse vaso fechado que é o seu universo terrestre, e sem outro ideal que não o de esforçar-se por surpreender os segredos da natureza e pô-los à disposição dos seus semelhantes.

Eis o motivo por que a influência de Bacon não parece ter ultrapassado a sua época e por que a sua figura se mostra tão pálida em confronto com os outros gênios filosóficos surgidos depois dele: Descartes, Leibniz, Spinoza. “O grande movimento científico iniciado no século XVI, antes de Bacon”, escreve Sortais6, “desenvolveu-se portanto nos séculos seguintes, fora da sua influência.” É que mesmo na ciência ele se ateve a um empirismo demasiado estreito e não soube recorrer a um desses princípios universais que são os únicos a permitir classificações verdadeiramente racionais e uma visão também racional da causalidade.

Não foi, todavia, desconhecido pelo seu tempo nem desprezado pelos outros. Seu culto foi assegurado pela Sociedade Real de Londres, fundada em 1645; teve no físico Roberto Boyle (1627-1691) o seu discípulo mais fiel; foi apreciado por Newton e seguido por Glanvill. Neste terreno, como no da vida pública a fortuna jamais o abandonou completamente.

É mister entretanto não esquecer, numa apreciação geral da sua filosofia, que não permite por certo colocá-lo em primeira plana, a inteligência de que foi dotado e os serviços que prestou. Talvez o tenham julgado com alguma severidade, como homem e como pensador. É verdade que mostrou grandes fraquezas morais: estas aparecem melhor numa posição que o põe em relevo na história, mas esquecemos por outro lado que os grandes deste mundo, para subir ou para se manterem, estão sujeitos a tentações e a desfalecimentos cujo espetáculo nos é poupado na vida particular de nossos concidadãos. No trato cotidiano, Bacon foi caridoso, espontâneo e de uma modéstia não afetada. Possuiu um espírito vasto, se não profundo, e apesar de não ter sido o autor das peças de Shakespeare mereceu que elas lhe fossem atribuídas. Era animado da ânsia de saber dos homens da sua época e, embora presumisse das próprias forças querendo operar por si e sem ajuda uma revolução intelectual cujos efeitos sofremos ainda hoje sem poder prever-lhes o termo, não faltou audácia nem generosidade à sua concepção. Contribuiu, quanto ao pormenor, com sugestões e enriquecimentos valiosos e quase nãodisciplina, inclusive a história literária, que lhe não deva alguma coisa. No fim da Renascença e no limiar dos tempos modernos, saudamos em Bacon um homem que reuniu os ardores e as ambições sem dúvida excessivos dessas duas épocas e acreditou que a natureza bastaria à natureza ou que permitiria, por si só, sair dela.

Ego eram buccinator tantum. Foi assim que o próprio Bacon, numa hora de entusiasmo e diminuindo-se a fim de pôr mais em relevo a causa que propugnava, quis apreciar o seu papel. “Sim”, acrescenta, “tenho sido o arauto sonoro a conclamar os sábios, não mais para que se oponham mas para que se unam a fim de prosseguir numa obra comum e avançar tão longe quanto o permitir o Deus altíssimo e todo-poderoso.” É duvidoso que o Deus altíssimo e todo-poderoso tenha sido tão bem servido como o julgava Bacon pelo empreendimento deste e pelo espírito que o animava, embora se deva reconhecer que o filósofo se humilhava em demasia; mas é possível que este pitoresco juízo emitido por um grande homem a seu próprio respeito contivesse uma boa dose de verdade. [Truc]