apreensão

gr. katalepsis; teoria estoica de, katalepsis, noesis 16; relação com conceitos, ennoia; percepção da imagem sensível, phantasia (FEPeters)


O objeto é como prendido, apreendido pelo conceito. O ato de leitura é um processo de apreensão, onde conceitos se negociam entre leitor e autor. [Chenique]


(lat. apprehensio; in. Apprehension; fr. Appréhension; al. Apprehenzion; it. Appreensioné).

Termo introduzido pela escolástica do séc. XIV para designar o ato com que se apreende ou se toma como objeto um termo qualquer (conceito, proposição ou qualidade sensível), distinguindo-se de assentimento, com que se julga a seu respeito, isto é, afirma-se ou nega-se. Ockham diz: “Entre os atos do intelecto, um é o apreensivo, que se refere a tudo o que é promovido pelo ato da potência intelectiva, e o outro pode ser chamado de judicativo, pois com ele o intelecto não somente apreende o objeto, mas também assente nele ou dissente dele” (In Sent., prol., q. 1, 0). O ato apreensivo pode consistir na formação de uma proposição ou no conhecimento de um complexo já formado (Quodl., V, q. 6). Essa palavra também é empregada por Wolff (Log, § 33) e Kant a utilizou na primeira edição da Crítica da Razão Pura (Dedução dos conceitos puros do intelecto), ao falar de uma “síntese da apreensão”, que consistiria em recolher o múltiplo da representação de tal modo que dele surja “a unidade da intuição”. As vezes, no uso moderno, apreensão vem contraposto à compreensão como conhecimento primitivo ou simples que não contém nenhuma explicação ou valorização do objeto apreendido. (Abbagnano)


a) Termo escolástico, extraído da filosofia de Aristóteles, com a designação de noções absolutamente simples que, em razão de sua natureza, estão acima do erro e da verdade lógica (Metafísica, liv. IX, c).

b) Na Idade Média, porém, sofreu uma modificação em sua significação primitiva, servindo, não somente para designar as noções simples, mas qualquer espécie de noção, de concepção propriamente dita, que não faz parte, e que não seja tema de um tal juízo.

c) Posteriormente, em Kant, sofreu nova modificação, que dá a acepção de um ato da imaginação, que consiste em abraçar o em coordenar, numa única imagem ou numa concepção única, os elementos diversos da intuição sensível, tais como a cor, a solidez, a extensão, etc.

d) Modernamente usado ainda na acepção da Idade Média em b.

e) Familiarmente: significado de fácil compreensão. Ex.: «O sentido desta frase é de fácil apreensão», etc.

b) Também usado na psicologia contemporânea para designar a memória imediata, ou a capacidade limite de reprodução correta, sem dilação, após uma percepção única, de algarismos, letras, palavras, imagens, etc. (H. Piéron, citado por Lalande). [MFSDIC]


O mais simples elemento que entra na composição do raciocínio é o conceito ou o termo. A primeira questão que se coloca a seu respeito é a de sua formação ou da operação pela qual ele é constituído. Essa operação, já o dissemos, é a simples apreensão. De uma maneira geral assim se define essa operação: o ato pelo qual a inteligência percebe a essência de uma coisa, quidditas, sem afirmar ou negar o que quer que seja a seu respeito

Operatio qua intellectus aliquam quidditatem intelligit, quin quidquam de ea affirmet vel neget.

Esta operação tem como primeiro caráter a simplicidade. Simplicidade, de início, quanto ao objeto. Esse objeto é a essência da coisa, quer dizer, o que se exprime quando se deseja responder à questão quid est, o que é? Responde-se, portanto, por um termo simples: é um “homem”, um “animal”. Em si, a essência é alguma coisa de simples. As vezes, é verdade, empregar-se-á para exprimi-Ia um termo complexo, “animal racional”, “homem branco”, porém essas complexidades não são objeto de simples apreensão a não ser na medida em que conservam uma certa unidade. O objeto da simples apreensão é sempre encarado como sendo uma unidade, assim é com muita pertinência que S. Tomás definiu essa operação: a inteligência dos indivisíveis, indivisibilium intelligentia. O ato pelo qual o espírito percebe essa essência indivisível das coisas é ele próprio simples, quer dizer, não implica em nenhuma síntese, em nenhum movimento como acontece no julgamento e no raciocínio. É uma visão simples: uma simples apreensão.

Em segundo lugar, esse ato caracteriza-se por seu modo abstrato. A quididade representa a natureza de uma coisa em geral, independentemente de suas condições de realização, em tal ou tal indivíduo. Designa, por exemplo, “o homem” e não tal homem particular, Sócrates, Platão. Sob esse aspecto, a simples apreensão se distingue de toda e qualquer visão intuitiva dos seres em sua existência concreta atual. Esse modo concreto será, nós o veremos, característico da segunda operação do espírito.

Finalmente, a simples apreensão tem, como propriedade distintiva, na ordem do conhecimento, o ser sem verdade nem falsidade. Ela não afirma nem nega, apenas percebe, sem mais, o objeto que lhe é apresentado. O julgamento, pelo contrário, que sempre implica em afirmação ou negação, ocasionará necessariamente uma qualificação de verdade ou de falsidade. O conceito de “homem” não é nem verdadeiro nem falso, enquanto que é necessariamente verdadeiro ou falso afirmar: “este animal é um homem”.

Concluamos fazendo uma importante observação. A leitura de S. Tomás e dos escolásticos deixa frequentemente a impressão de que, em seu espírito, a simples apreensão atinge e esgota com um só olhar a essência ou a natureza profunda das coisas. No homem, por exemplo, ela revelaria repentinamente o que exprime a definição clássica, “o homem é um animal racional”. É uma maneira bem simplificada de representar as coisas. As primeiras percepções da inteligência são, evidentemente, muito gerais e muito confusas. É lentamente, depois de um laborioso esfôrço, que se chega a precisar e a distinguir os conceitos. De fato, muitas noções ficarão sempre mal definidas em nosso espírito. Ora, em lógica, onde se faz a teoria do raciocínio ideal, não se leva em conta, praticamente, essa imperfeição efetiva de nosso pensamento e se manipula os conceitos como se eles estivessem sempre bem determinados. É importante lembrar que essa simplificação da vida real do espírito, necessária para assegurar seu funcionamento lógico, não exprime frequentemente, senão de maneira muito imperfeita, a essência das naturezas mesmas que se considera. [Gardeil]


APREENSÃO
Vernunft, apreender, apprehensio
VIDE
*Dianoia
*Nous


François Chenique
Excertos traduzidos de Eléments de logique classique : l’art de penser et de juger, l’art de raisonner

A simples apreensão é a primeira das três grandes operações do espírito que distingue tradicionalmente a lógica clássica. Esta distinção repousa sobre a análise dos mecanismos do pensamento e nos conduz das noções mais simples no ínício até estudos mais complexos onde estas noções simples se combinam para forma o juízo e o raciocínio.

A simples apreensão é com efeito a atividade elementar de toda vida do espírito. É ela que permite a percepção de noções simples onde a inteligência reconhece (apreende) os objetos e isso, não ao nível dos sentidos como podem fazer os animais, mas ao nível do pensamento. O resultado deste ato operado pela inteligência é o conceito ou o termo que corresponde a ideia que se tem de uma coisa. Em se confrontando estes conceitos formarão a base do juízo e através deste se tornarão os elementos essenciais do raciocínio.

A simples apreensão é o ato pelo qual a inteligência captura a essência de uma coisa, sua Quididade, sem nada afirmar ou negar. Ela é assim a simples representação intelectual da essência ou Quididade de um objeto.


Filosofia
Marcia Sá Cavalcante Schuback
Excertos de “Para Ler os Medievais”

A partir do momento em que se percebe que, para o espírito medieval, o lugar das coisas é o lugar de coisas-sentidos, pode-se tentar delimitar um pouco mais o que é o lugar. Uma vez que o sentido de ser é de ser num pertencimento integral, e que tudo o que é, é participação, ou seja, acolhimento comunicador desse pertencimento, a essência do lugar se descobre como lugar-apreensão, ou mais aproximadamente como lugar-apreensão de sentido. O caráter dinâmico do lugar corresponde à dinâmica da apreensão, que é em si mesma apreensão de sentido. Nesses termos, o que seria então o lugar de deus? “Onde é que ele (deus) está em seu templo, em que ele resplandece como sagrado? Apreensão (Vemunft) é o templo de deus.”[[Mestre Eckhart — SERMÃO IX.]] A tradução comum da palavra alemã Vernunft é razão. O sentido que os medievais atribuíam à razão difere, porém, de maneira decisiva do sentido que nós atribuímos. A razão medieval separa mas não exclui a sensibilidade, não se reduz nem ao lógico e nem à racionalização das faculdades. Indica a estrutura da apreensão, que reúne, numa unidade inseparável, o apreender e o que se dá à apreensão. Sobretudo com relação ao significado de apreender, não se pode “esquecer” o que, para o medieval, é sempre o ponto de partida: a saber, a unidade indissociável entre deus e todas as coisas. Aqui vale, de forma exemplar, a analogia de que assim como as coisas não se separam de deus, também os “objetos” da apreensão não se separam do apreender. A apreensão já se dá no próprio ser-coisa, pois ser-coisa é ser-sinal da integralidade de deus. Decisivo aqui é perceber que o simples ser das coisas já é a sua apreensão e que, por conseguinte, é inteiramente estranha a distinção entre sujeito do conhecimento e objeto para o conhecimento, entre razão cognitiva e realidade cognoscível. O ser das coisas já é a sua apreensão porque ser-coisa é ser uma evidenciação da doação integral de deus. Essa “interioridade” do apreender na coisa apreendida também não deve ser confundida com a ideia moderna de subjetivismo e subjetividade. A “interioridade” da apreensão diz respeito ao caráter intrínseco das coisas como um ser-sinal, uma estrutura de sentido. As coisas em seu modo mais próprio e singular estão sempre a indicar a doação de deus enquanto um dar-se inteiramente em tudo o que é. E esse “inteiramente”, esse modo integral que constitui o lugar-apreensão de deus. É ainda a indicação desse sentido integral que constitui o lugar próprio de cada coisa. Com isso, pode-se determinar como essência do lugar das coisas o ser lugar de indicação do sentido divino.

Mas dentre as várias coisas e os vários modos de ser indicação do sentido divino está a alma, a alma “que possui uma gotinha da apreensão (razão), uma fagulha, um galho”. A alma, “em virtude da qual o homem toma vulto e cresce”, é que permite a apreensão humana das coisas. Pela alma, o homem não apreende as coisas na rudeza de seu ser, mas num refinamento, na transparência “do ar e da luz”. Mestre Eckhart descreve a alma como uma força que age nos vários níveis da apreensão humana. Essa força é força de reunião, a qual permite que tanto os órgãos da sensibilidade como o pensamento apreendam as coisas como lugar-indicação do ser-uno de deus e não em seu mero “ser”, ou seja, em sua mera substancialidade. A possibilidade de apreender as coisas como sinais de deus depende da força da alma pela qual se pode apreender o que não é imediatamente dado, o que não é a rudeza de um estar-aí. A alma da apreensão das coisas mostra-se, assim, como a possibilidade de apreender as coisas em toda a sua circunstância, em sua modalidade. Mestre Eckhart afirma, nesse sentido, que a apreensão (razão) é mais nobre do que a vontade, pois “a vontade prende-se às coisas como elas são enquanto que a apreensão prende-se às coisas no modo em que ela (a apreensão) é”. O modo em que a apreensão se dá está longe de qualquer arbitrariedade ou autonomia da razão. Em questão aqui encontra-se a possibilidade de apreender as coisas com alma, ou seja, de apreendê-las como sinais da totalidade. Com alma, apreendem-se as coisas “para além” delas, ou seja, para além da rudeza de seu simples estar-aí. Com alma, apreendem-se as coisas em suas circunstâncias, em seus modos de ser. Esse “para além” das coisas não é sinônimo de uma alienação do concreto[[Quanto mais se lê os medievais a partir do espírito religioso de sua mística, mais se pode perceber como o medieval não está empenhado em sublimar o concreto. Para o religioso, a questão é ao contrário ampliar o concreto, transpondo-o para a sua concreção, para o verbo de deus. Se quisermos entender em que consiste essa transposição do concreto para a sua concreção, podemos ler a seguinte passagem de Paul Klee: “Gostaria, pois, de considerar a dimensão do objeto, num sentido novo para si, e, com isso, tentar mostrar como o artista chega muitas vezes a uma tal ‘deformação’ aparentemente arbitrária da forma natural de aparecimento. Aliás, ele não dá a importância obrigatória às formas naturais de aparecimento, como o fazem muitos realistas críticos. O artista que não se sente tão ligado a essas realidades não vê nessas formas-terminais a essência do processo natural de criação. Pois lhe interessam mais as forças formadoras do que as formas-terminais. Ele é talvez, sem o querer, exatamente filósofo. Embora não declare, como o fazem os otimistas, que este mundo é o melhor de todos os mundos e também não queira dizer que este mundo que nos cerca é ruim a ponto de não se poder tomá-lo como exemplo. Embora não diga isso, diz para si: o mundo nesta forma prefigurada não é o único de todos os mundos! Assim apreende as coisas que a natureza lhe faz perfilar diante dos olhos com um olhar penetrante. Quanto mais profundamente olha, tanto mais facilmente consegue estender os pontos de vista de hoje para ontem. Tanto mais se lhe cunha nele, no lugar de uma figura pronta da natureza, a figura única da criação como gênesis”. Das bildnerische Denken. Jürg Spiller, Brunno Schwabe & Co. Verlag, Basel/Stuttgart, 1956. Esse olhar filosófico do artista é o olhar mais próximo do engrandecimento do concreto buscado pelos medievais.]]. É, bem ao contrário, uma ampliação do concreto, o que Mestre Eckhart chamou de “elevar o ser em deus”. Essa ampliação é a visão engrandecedora das coisas que não se fixa na rudeza do simples estar-aí, seguindo as direções da própria coisa, o para onde e de onde ela se mostra. Trata-se de uma circunstanciação das coisas. Se, para a religiosidade do Cristianismo medieval, as coisas são sinais do ser-uno de deus, isso não significa que as coisas carreguem dentro de si um sentido de deus, como um continente carrega um conteúdo diverso de si. Ser-sinal é dar-sinal a partir de si mesmo. As coisas são microcosmo porque dão sinal do ser-uno de deus a partir de si mesmas, de sua singularidade concreta. E por isso que, de um lado, a observação dos animais se faz como bestiário e, de outro, os florilégios se organizam imitando a formação das flores. O medieval busca ficar atento a todo e qualquer elemento, a toda e qualquer “criatura” porque, seguindo as circunstâncias de cada uma, pode seguir os sentidos do doar-se inteiramente de deus. Cada lugar de cada coisa é, assim, a sua circunstância, o para onde ela assinala. É isso que legitima o mundo de associações que caracteriza os textos medievais. Por vício psicanalítico, chamamos de “livres” essas associações porque não percebemos que elas são rigorosas quando as coisas são as suas circunstâncias, os seus modos. A alma da apreensão humana consiste, nesses termos, na capacidade de apreender as coisas seguindo os seus modos e, assim, numa apreensão em movimento. Apreensão em movimento é seguir vestígios, é investigação e busca. E, numa busca, não há “lugares”. Dessa forma, para a apreensão humana não há propriamente lugar, mas somente o quase-lugar de uma busca.


APREENSÃO
Vernunft, apreender, apprehensio
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  • Dianoia
  • Nous

    François Chenique
    Excertos traduzidos de Eléments de logique classique : l’art de penser et de juger, l’art de raisonner

    A simples apreensão é a primeira das três grandes operações do espírito que distingue tradicionalmente a lógica clássica. Esta distinção repousa sobre a análise dos mecanismos do pensamento e nos conduz das noções mais simples no ínício até estudos mais complexos onde estas noções simples se combinam para forma o juízo e o raciocínio.

    A simples apreensão é com efeito a atividade elementar de toda vida do espírito. É ela que permite a percepção de noções simples onde a inteligência reconhece (apreende) os objetos e isso, não ao nível dos sentidos como podem fazer os animais, mas ao nível do pensamento. O resultado deste ato operado pela inteligência é o conceito ou o termo que corresponde a ideia que se tem de uma coisa. Em se confrontando estes conceitos formarão a base do juízo e através deste se tornarão os elementos essenciais do raciocínio.

    A simples apreensão é o ato pelo qual a inteligência captura a essência de uma coisa, sua Quididade, sem nada afirmar ou negar. Ela é assim a simples representação intelectual da essência ou Quididade de um objeto.


    Filosofia
    Marcia Sá Cavalcante Schuback
    Excertos de “Para Ler os Medievais”

    A partir do momento em que se percebe que, para o espírito medieval, o lugar das coisas é o lugar de coisas-sentidos, pode-se tentar delimitar um pouco mais o que é o lugar. Uma vez que o sentido de ser é de ser num pertencimento integral, e que tudo o que é, é participação, ou seja, acolhimento comunicador desse pertencimento, a essência do lugar se descobre como lugar-apreensão, ou mais aproximadamente como lugar-apreensão de sentido. O caráter dinâmico do lugar corresponde à dinâmica da apreensão, que é em si mesma apreensão de sentido. Nesses termos, o que seria então o lugar de deus? “Onde é que ele (deus) está em seu templo, em que ele resplandece como sagrado? Apreensão (Vemunft) é o templo de deus.”[[Mestre Eckhart — SERMÃO IX.]] A tradução comum da palavra alemã Vernunft é razão. O sentido que os medievais atribuíam à razão difere, porém, de maneira decisiva do sentido que nós atribuímos. A razão medieval separa mas não exclui a sensibilidade, não se reduz nem ao lógico e nem à racionalização das faculdades. Indica a estrutura da apreensão, que reúne, numa unidade inseparável, o apreender e o que se dá à apreensão. Sobretudo com relação ao significado de apreender, não se pode “esquecer” o que, para o medieval, é sempre o ponto de partida: a saber, a unidade indissociável entre deus e todas as coisas. Aqui vale, de forma exemplar, a analogia de que assim como as coisas não se separam de deus, também os “objetos” da apreensão não se separam do apreender. A apreensão já se dá no próprio ser-coisa, pois ser-coisa é ser-sinal da integralidade de deus. Decisivo aqui é perceber que o simples ser das coisas já é a sua apreensão e que, por conseguinte, é inteiramente estranha a distinção entre sujeito do conhecimento e objeto para o conhecimento, entre razão cognitiva e realidade cognoscível. O ser das coisas já é a sua apreensão porque ser-coisa é ser uma evidenciação da doação integral de deus. Essa “interioridade” do apreender na coisa apreendida também não deve ser confundida com a ideia moderna de subjetivismo e subjetividade. A “interioridade” da apreensão diz respeito ao caráter intrínseco das coisas como um ser-sinal, uma estrutura de sentido. As coisas em seu modo mais próprio e singular estão sempre a indicar a doação de deus enquanto um dar-se inteiramente em tudo o que é. E esse “inteiramente”, esse modo integral que constitui o lugar-apreensão de deus. É ainda a indicação desse sentido integral que constitui o lugar próprio de cada coisa. Com isso, pode-se determinar como essência do lugar das coisas o ser lugar de indicação do sentido divino.

    Mas dentre as várias coisas e os vários modos de ser indicação do sentido divino está a alma, a alma “que possui uma gotinha da apreensão (razão), uma fagulha, um galho”. A alma, “em virtude da qual o homem toma vulto e cresce”, é que permite a apreensão humana das coisas. Pela alma, o homem não apreende as coisas na rudeza de seu ser, mas num refinamento, na transparência “do ar e da luz”. Mestre Eckhart descreve a alma como uma força que age nos vários níveis da apreensão humana. Essa força é força de reunião, a qual permite que tanto os órgãos da sensibilidade como o pensamento apreendam as coisas como lugar-indicação do ser-uno de deus e não em seu mero “ser”, ou seja, em sua mera substancialidade. A possibilidade de apreender as coisas como sinais de deus depende da força da alma pela qual se pode apreender o que não é imediatamente dado, o que não é a rudeza de um estar-aí. A alma da apreensão das coisas mostra-se, assim, como a possibilidade de apreender as coisas em toda a sua circunstância, em sua modalidade. Mestre Eckhart afirma, nesse sentido, que a apreensão (razão) é mais nobre do que a vontade, pois “a vontade prende-se às coisas como elas são enquanto que a apreensão prende-se às coisas no modo em que ela (a apreensão) é”. O modo em que a apreensão se dá está longe de qualquer arbitrariedade ou autonomia da razão. Em questão aqui encontra-se a possibilidade de apreender as coisas com alma, ou seja, de apreendê-las como sinais da totalidade. Com alma, apreendem-se as coisas “para além” delas, ou seja, para além da rudeza de seu simples estar-aí. Com alma, apreendem-se as coisas em suas circunstâncias, em seus modos de ser. Esse “para além” das coisas não é sinônimo de uma alienação do concreto[[Quanto mais se lê os medievais a partir do espírito religioso de sua mística, mais se pode perceber como o medieval não está empenhado em sublimar o concreto. Para o religioso, a questão é ao contrário ampliar o concreto, transpondo-o para a sua concreção, para o verbo de deus. Se quisermos entender em que consiste essa transposição do concreto para a sua concreção, podemos ler a seguinte passagem de Paul Klee: “Gostaria, pois, de considerar a dimensão do objeto, num sentido novo para si, e, com isso, tentar mostrar como o artista chega muitas vezes a uma tal ‘deformação’ aparentemente arbitrária da forma natural de aparecimento. Aliás, ele não dá a importância obrigatória às formas naturais de aparecimento, como o fazem muitos realistas críticos. O artista que não se sente tão ligado a essas realidades não vê nessas formas-terminais a essência do processo natural de criação. Pois lhe interessam mais as forças formadoras do que as formas-terminais. Ele é talvez, sem o querer, exatamente filósofo. Embora não declare, como o fazem os otimistas, que este mundo é o melhor de todos os mundos e também não queira dizer que este mundo que nos cerca é ruim a ponto de não se poder tomá-lo como exemplo. Embora não diga isso, diz para si: o mundo nesta forma prefigurada não é o único de todos os mundos! Assim apreende as coisas que a natureza lhe faz perfilar diante dos olhos com um olhar penetrante. Quanto mais profundamente olha, tanto mais facilmente consegue estender os pontos de vista de hoje para ontem. Tanto mais se lhe cunha nele, no lugar de uma figura pronta da natureza, a figura única da criação como gênesis”. Das bildnerische Denken. Jürg Spiller, Brunno Schwabe & Co. Verlag, Basel/Stuttgart, 1956. Esse olhar filosófico do artista é o olhar mais próximo do engrandecimento do concreto buscado pelos medievais.]]. É, bem ao contrário, uma ampliação do concreto, o que Mestre Eckhart chamou de “elevar o ser em deus”. Essa ampliação é a visão engrandecedora das coisas que não se fixa na rudeza do simples estar-aí, seguindo as direções da própria coisa, o para onde e de onde ela se mostra. Trata-se de uma circunstanciação das coisas. Se, para a religiosidade do Cristianismo medieval, as coisas são sinais do ser-uno de deus, isso não significa que as coisas carreguem dentro de si um sentido de deus, como um continente carrega um conteúdo diverso de si. Ser-sinal é dar-sinal a partir de si mesmo. As coisas são microcosmo porque dão sinal do ser-uno de deus a partir de si mesmas, de sua singularidade concreta. E por isso que, de um lado, a observação dos animais se faz como bestiário e, de outro, os florilégios se organizam imitando a formação das flores. O medieval busca ficar atento a todo e qualquer elemento, a toda e qualquer “criatura” porque, seguindo as circunstâncias de cada uma, pode seguir os sentidos do doar-se inteiramente de deus. Cada lugar de cada coisa é, assim, a sua circunstância, o para onde ela assinala. É isso que legitima o mundo de associações que caracteriza os textos medievais. Por vício psicanalítico, chamamos de “livres” essas associações porque não percebemos que elas são rigorosas quando as coisas são as suas circunstâncias, os seus modos. A alma da apreensão humana consiste, nesses termos, na capacidade de apreender as coisas seguindo os seus modos e, assim, numa apreensão em movimento. Apreensão em movimento é seguir vestígios, é investigação e busca. E, numa busca, não há “lugares”. Dessa forma, para a apreensão humana não há propriamente lugar, mas somente o quase-lugar de uma busca.