analítica transcendental

Depois da estética transcendental, consagrada a elucidar aquilo que o sujeito pôs (espaço e tempo) para a cognoscibilidade das coisas, dos fenômenos, vem a teoria que deve elucidar aquilo que o sujeito põe para a cognoscibilidade das leis efetivas que regem esses fenômenos. Em suma: vem o problema de como são possíveis os juízos sintéticos a priori, não já das formas possíveis dos objetos, mas dos objetos reais chamados fenômenos, que não são coisas em si mesmos, antes coisas revestidas das formas espaço e tempo, e, portanto, objeto para o sujeito, o qual é sujeito de conhecimento para eles.

A ciência humana não se contentou com ser matemática; é também física; isto é, não somente determinou a priori, de antemão, as formas que podem ter os objetos, como também determinou a existência, a realidade e as leis que regem o aparecimento e desaparecimento dos próprios fenômenos.

É esta segunda parte que leva o nome de analítica transcendental. Também podemos inaugurar seu estudo com a clássica interrogação, a clássica pergunta de Kant: como são possíveis os juízos sintéticos a priori na física? Ou dito de outro modo: como é possível que nós tenhamos conhecimento a priori de objetos reais?

A pergunta é verdadeiramente interessante. Porque é um fato que nós temos, com efeito, conhecimento a priori de objetos reais. Nós, por exemplo, sabemos que existem objetos, que existem coisas; que essas coisas estão aí, que existem. Mas, além disso, sabemos que cada coisa tem seu ser, sua essência, sua natureza. Que significa isto de natureza? Significa que as coisas que existem estão elas mesmas regidas por leis, têm uma substância, estão compostas de propriedades, aparecem e desaparecem não caprichosamente, mas segundo leis fixas. Mas, além disso, sabemos também que estas coisas que existem são todas elas efeitos de causas e causas de efeitos. Cada uma das coisas é o que é e está onde está e tem as propriedades que tem porque algum outro fenômeno antecedente no tempo veio causar esse ser, esse estar e essas propriedades. E sabemos também que cada coisa das que existem no mundo é por sua vez causa de efeitos, ou seja que ela mesma produz, gera outras coisas, muda outras coisas de lugar, causa propriedades, movimentos, mudanças nas outras coisas; e sabemos que esses efeitos e essas causas não são tampouco caprichosos, mas todos eles são redutíveis a leis e a fórmulas gerais. Além disso, porém, sabemos que em todas as coisas que existem há uma mútua ação e reação; umas produzem efeitos em outras, mas por sua vez recebem efeitos dessas outras. Sabemos, por último, que todas elas, o conjunto inteiro das coisas, aquilo que chamamos Natureza, consiste num sistema de leis universais que podem ser expressas em fórmulas matemáticas e que traduzem com a máxima exatidão essas ações e reações, essas causas e efeitos, essas essências e propriedades de todas as coisas.

Tudo isto sabemo-lo e sabemo-lo a priori. Porque, como poderíamos sabê-lo se não o soubéssemos a priori? Teria que ser porque as coisas mesmas no-lo tivessem ensinado. Mas as coisas não podem proporcionar-nos semelhante conhecimento. As coisas enviam impressões, como diria Hume; nada mais do que impressões. Pois bem; nada disto (que cada coisa tem sua essência, ou que é efeito e causa, ou que é ação e reação, que tudo é redutível a leis universais) nada disso são impressões; nenhuma coisa nos envia a causa como impressão; nenhuma coisa nos envia a essência como impressão, pois essas essências, essas causas não estão naquilo que nós percebemos sensivelmente da realidade.

Por conseguinte, existe um conhecimento a priori das coisas da natureza. E há um exemplo característico desse conhecimento a priori e é bem conhecido. É esse conjunto de teoremas que em qualquer livro de física precede ao resto do estudo e que leva o nome de “Mecânica racional”. Na mecânica racional se estabelece uma grande quantidade de teoremas, de proposições, que enunciam acerca dos objetos reais, por exemplo, as leis do movimento, e, todavia, essas leis do movimento não são derivadas da experiência, não as lemos nós mesmos nas coisas como quem lê um livro, senão que as extraímos integralmente do nosso próprio pensamento.

Assim, pois, apresenta-se aqui, do mesmo modo que na estética transcendental, o problema essencial de toda a Crítica da razão pura: o problema de como sejam possíveis conhecimentos a priori na física. Ou dito de outro modo: como é possível o conhecimento da realidade das coisas? [Morente]

VIDE análise da realidade; ato do juízo; classificação dos juízos; tabela das categorias; dedução transcendental; inversão copernicana