Talvez não haja ser humano que, pelo menos uma vez na vida, não se tenha sentido exilado no mundo a que se afeiçoou e que se lhe afeiçoou, no mundo em que se entranhou e que se lhe entranhou. Súbito arrebatamento de estranheza fará que de si para si pense e diga: «Este mundo não é o meu.» Acertado é que o diga e pense, quando já não o reconhece como obra sua. E daí, recusa após recusa, sempre a mesma Recusa. Outrora, a recusa de um mundo feito por outros que ainda não eram ele, agora, recusa do mundo feito pelo outro que ele já não é. Outro mundo é o «afazer» de toda a hora de outrora e agora. «Mundo» será sempre afazer dos homens, que homem nenhum jamais achará definitivamente feito? Ou não seria o «mundo a fazer» mera ilusão de um [29] triunfo sobre o Exílio? Ou a versão humana de um processo cuja natureza, até hoje, se furta a todo o entendimento? Na verdade, se homem e mundo são como as duas coordenadas de um projeto mutante, o homem só se sente invadido de estranheza em relação ao mundo que dele fora, quando já vive em outro que dele começa a ser, porque ele mesmo em outro se veio tornando. Mas, assim, o homem só faz o virtualmente feito, e a iniciativa da ação é a de quem ou do que, no mesmo gesto, faz o «mundo deste homem» e o «homem deste mundo». Que será, então, do afazer humano e só humano? Puro jogo com uma divindade que arteiramente infunde no homem a convicção ludibriante de que o ganhou ele, no momento em que o perdeu. Não quero dizer, evidentemente, que o homem nada faz, mas só que o que faz, fá-lo em obediência a um plano que compromete a obra com o obreiro e o obreiro com a obra. E tão profundamente os compromete, que, ao fim e ao cabo, ficamos sem saber qual a parte do fazer que coube ao homem e qual a que coube ao mundo. Sobretudo, há que nos resignar à situação paradoxal de ter de procurar o ser deste homem no ser deste mundo, e o ser deste mundo no grau de humanidade deste homem, e isto, enquanto não lhe sobrevenha o sentimento de estranheza que prenuncia a mutação do projeto — do projeto, não o esqueçamos, que coordena «homem» e «mundo». [EudoroMito:29-30]