acima abaixo

gr. ekei: lá, além, acima

Descendo, do Grande Em Cima para o Grande Em Baixo, a divindade se desveste de todas as vestimentas, de todas as insígnias do que nela é divino. Mas seu corpo nu ainda se mostrava vestido aos olhos agudíssimas da Rainha dos Infernos: faltava despojá-la do riquíssimo paramento da vida. Por aí, a grande deusa se identificaria com o mais comum dos seres humanos. Por isso ordenou que sobre ela esparzissem as águas da morte. Pouco importa repetir que nada há mais encoberto e envolvido do que a nudez de um morto: que o envolve e encobre é a vida ausente, porque ausência é a agravada presença do que não permite que um morto seja nada. Um morto põe-nos em presença da Vida; um vivo, só diante da vida dele. Porém, o que mais importa é notar que os homens sobem o mesmo caminho que os deuses descem. Só com esta diferença: de Cima para Baixo, despem-se os deuses; de Baixo para Cima, despem-se os homens. A meio caminho, deuses e homens se encontram, uns mais ou menos despidos, outros, mais ou menos vestidos, todos mais ou menos encobertos e envolvidos, todos mais ou menos desencobertos e desenvolvidos. A meio do caminho, homens se reconhecem nos deuses e os deuses, nos homens. A meio do caminho deuses saúdam os homens, como seus iguais. Os deuses, descendo, iniciam-se no Homem; os homens, subindo, iniciam-se em Deus. Mas foram os deuses que acenaram para o caminho, como «acenantes mensageiros da Divindade» que, sorrindo, nuns e noutros, põem seu olhar complacente. Essa era a mensagem. Ou não só? Não só essa. Se passei a última porta, aquela que por sua estreiteza não permite senão que «eu» passe, despojado de tudo quanto «me» pertencia, de tudo quanto do «mim mesmo» era e que «eu» não sou, porque diante da Divindade cheguei, como sendo o que sou, para baixo ficaram os deuses. Cada um deles fora jogado na indecisão de serem ou terem seu mundo. Se morrem para vida do mundo, são seu mundo; se vivem, têm o mundo em que vivem. Mas eu sou eu só, pela Excedência que imita a Excessividade incontida, que não deixou que eu me detivesse no caminho, em qualquer dos mundos que algum deus seja ou tenha. Nisto, um homem pode superar todos os deuses. [EudoroMito:65]


Uma antiga anedota conta que depois da morte de Platão foram encontradas entre suas notas variações diversas da passagem inicial da República. Isso soa estranho, pois esse início não parece abrigar nada de filosoficamente penetrante, e a versão que Platão finalmente escolheu é: “(Sócrates🙂 Ontem desci com Glauco, filho de Aríston, ao Pireu, a fim de orar à deusa e também para ver como celebrariam a festa lá, visto que o faziam pela primeira vez. A pompa dos habitantes do lugar me pareceu bela, ainda que não menos excelente fosse a que os trácios conduziam. Após termos feito nossas preces e visto a cerimônia, subimos de volta à cidade” (327a). Platão, cuidadosamente, dava o maior valor à forma externa de seus escritos filosóficos, e esse episódio, transmitido pelos doxógrafos de modo nem um pouco fortuito, espelha isso: a frase inicial da República é uma antecipação [12] de todo o movimento interno do diálogo de SUBIDA e DESCIDA na narrativa-moldura; ela aponta cataforicamente a subida e a descida na alegoria da caverna; os conteúdos simbólicos de descida ao mundo inferior (pela deusa trácia, que era uma divindade do mundo inferior), que aparecem, por exemplo, na alegoria da caverna (514a-518b), no final do escrito na narrativa sobre o Hades de Er (614a-621b), na cidade como comunidade humana política na altura visível do marco terrestre, que deve primeiro ser escalado, e como ponto culminante do desenvolvimento conversacional que lentamente se eleva no diálogo — esses conteúdos interconectam-se aqui, no nível da ação introdutória, com os elementos em que percebemos que Sócrates é representado por Platão como aquele que – semelhantemente ao filósofo da alegoria da caverna – desce da altura iluminada a fim de passar algum tempo embaixo e, aos os que aí vivem e se alegram em contemplar um jogo com archotes (328ab), instruir sobre a verdadeira luz do conhecimento do plano superior e levá-los consigo para lá. [LéxicoPlatão:12-13]