deserto

O deserto comporta dois sentidos simbólicos essenciais: é a indiferenciação inicial ou a extensão superficial, estéril, debaixo da qual tem de ser procurada a Realidade.

Ninguém se admire de que o Islã use esse simbolismo, mas, se o faz, é mais, ao que parece, sob o segundo aspecto. Assim, Abd al-Karim al-Jili diz: Fora da Sua morada, a tropa erra no deserto. Que limites insuperáveis se abrem à frente da caravana que tende para Ela! Será fácil ao leitor observar como essa busca da Essência lembra a busca pelos hebreus da Terra Prometida através do deserto do Sinai, assim como a procura do Santo Graal.

No esoterismo ismaélico, o deserto é o ser exterior, o corpo, o mundo, o literalismo, que a pessoa percorre cegamente, sem perceber o Ser divino escondido no interior dessas aparências. Aliás, o deserto, segundo Mateus (12, 43), é povoado de demônios. Já para um Ricardo de Saint-Victor, o deserto, muito pelo contrário, é o coração, o lugar da vida eremítica interiorizada. A contradição não é senão aparente, todavia. Jesus foi tentado no deserto, e os eremitas, como Santo Antão, sofreram nele o assalto dos demônios. Os eremitas do deserto do coração não escapam, sem dúvida, melhor do que os outros. Seu deserto é o dos desejos e das imagens diabólicas exorcizadas.

Shankaracharya utiliza o simbolismo do deserto (maru) mais no primeiro sentido, para significar a uniformidade inicial e indiferenciada, fora da qual nada existe senão de maneira ilusória, como existem as miragens. Para Mestre Eckhart, o deserto onde reina apenas Deus é a indiferenciação reencontrada pela experiência espiritual, idêntica nesse particular ao mar do simbolismo búdico. Para Angelus Silesius, a Deidade é o deserto; e, até: eu devo subir inda mais alto do que Deus, num deserto, i.e., até a indistinção do princípio.

A preço de um paradoxo verbal, é possível afirmar que o símbolo do deserto é um dos mais férteis da Bíblia.

Terra árida, desolada, sem habitantes, o deserto significa para o homem o mundo afastado de Deus, como já foi visto, o covil dos demônios (Mateus, 12, 43; Lucas, 8, 29), o lugar do castigo de Israel (Deuteronômio, 29, 5) e da tentação de Jesus (Marcos, 1, 12 s.).

E, todavia, os escritores bíblicos não podem admitir que haja circunstâncias mais fortes que o seu Deus. De modo que, para retomar os exemplos precedentes, a estada de Israel no deserto é vista pelos profetas (Oseias, 2, 16; 13. 5 s.) como o tempo em que o povo teria de entregar-se só à graça de Deus (cf. maná). Da mesma forma, Jesus, tendo derrotado o tentador, é servido, no deserto, pelos anjos (Marcos, 1, 13).

É por isso que os monges do cristianismo posterior se retiraram para o deserto como os eremitas (deserto se diz, em grego, eremos), para afrontar, aí, a sua natureza e a do mundo unicamente com a ajuda de Deus. O conteúdo simbólico do termo aparece muito bem aí, pois logo se deixou de achar necessário Ir materialmente para o deserto, a fim de levar uma vida de eremita.

Assim como a estada de Israel no deserto fora a clara manifestação do poder de Deus, o judaísmo se pós a aguardar com fervor uma época na qual circunstâncias comparáveis parecessem o prelúdio da salvação final. Assim, o historiador Flavius Josephus (História da guerra judaica, 2, 259-261) conta que um profeta arrastou multidões entusiastas para o deserto, a fim de que encontrassem mais depressa a derradeira intervenção divina (Atos, 21, 38). Por ocasião da queda de Jerusalém, quando o incêndio do Templo manifesta a derrocada das esperanças nacionais do judaísmo, um movimento de massa conduz a um único pedido endereçado ao invasor romano: os vencidos solicitavam permissão para se retirarem para o deserto. Lá, com toda a certeza. estariam em melhores condições que alhures para esperar a salvação final do seu Deus. Podem-se discernir estas especulações no fundo do quadro da advertência evangélica: Se alguém vos disser que Ele (o Messias) está no deserto, não vades até lá (Mateus, 24, 26). Enfim, não foi, sem dúvida, por acaso que S. João Batista pregou no deserto (Mateus, 3, I e ref. paralelas) para anunciar a iminente vinda do esperado Messias. Lugar propício às revelações, o deserto favorece as empresas dos falsos profetas tanto quanto as dos verdadeiros.

É também na perspectiva de um novo êxodo, que repetisse as condições do primeiro, que é preciso compreender Apocalipse, 12, 10, 14: a mulher (= o povo de Deus), perseguida pelo dragão, foge para o deserto, onde Deus lhe assegura, um alimento miraculoso.

A ambivalência do símbolo é manifesta, a partir da simples imagem da solidão. É a esterilidade, sem Deus. É a fecundidade, com Deus, mas devida a Deus só. O deserto revela a supremacia da graça; na ordem espiritual, nada existe sem ela; tudo existe por ela e só por ela. (DS)