As ciências empírico-formais ou as ciências da natureza embora investiguem fenômenos materiais não diferem essencialmente das ciências formais puras. As ciências empírico-formais estudam os fenômenos do mundo material. Elas são chamadas de empíricas ou experimentais porque se fundamentam sobre a experiência sensível. De fato, porém, elas utilizam, na análise da realidade material, um aparelho teórico completamente formalizado, idêntico ao das ciências lógico-matemáticas.
A construção das ciências naturais se dá no seguinte roteiro: o homem se sente no convívio com uma realidade estranha que o solicita ao questionamento. As coisas aparecem revelando-se e ocultando-se. O espírito humano está nessa constante provocação de pergunta: o que são e por que são as coisas assim como são? A ciência é uma forma criada pelo homem que busca responder ao questionamento que surge de seu contacto com a realidade.
A mente assim provocada começa o diálogo com a realidade propondo-lhe hipóteses explicativas. A hipótese é um enunciado (ou conjunto de enunciados) criado pela mente para dizer o real.
«Chamamos de hipótese uma explicação provisória que tem por finalidade fazer compreender mais facilmente os fatos que fogem à prova dos fatos» (Mach, Erkenntnis und Irrtum, cp. 14).
Se a hipótese for comprovada pelo experimento passa a ser considerada «lei». Lei é um enunciado verificável. A lei científica está sempre inserida num contexto de teorias, que são o aparato confirmativo de sua possibilidade. O aparato teórico das ciências contém axiomas, teoremas, provas desses teoremas, definições.
Uma teoria científica contém em geral axiomas, teoremas, definições, hipóteses, «termos empíricos» que descrevem aspectos do real observáveis no sentido usual, «termos abstratos» que se referem a entidades não ostensivamente observáveis como p. ex. campo eletromagnético, intervalo de tempo, massa, pressão, onda, carga elétrica, e assim por diante.
Teorias, hipóteses, leis, conceitos e sinais convenientemente congraçados perfazem o conhecimento científico. Uma teoria empírico–formal é um conjunto de proposições que designam conceitos que se referem a objetos reais. Tomem-se por exemplo os termos da proposição «o calor dilata os metais». A lei contém dois termos «calor» e «metal». Os termos designam imediatamente dois conceitos. Nessa designação a lei é formalizada. Sua referência ao mundo físico, onde se verifica a existência do calor e dos metais, é um passo não essencial na formulação da teoria. A compreensão do mundo físico, oferecida por uma teoria, é por conseguinte anterior à experiência. A experiência como tal nada acrescenta à compreensão dos conceitos, apenas diz se tais conceitos convêm ou não à realidade física.
Uma teoria não é necessariamente a explicação do domínio dos fatos aos quais se refere, mas instrumento de classificação e previsão. A verdade de uma teoria científica está em sua validade. A validade é a capacidade que ela tem de cumprir as funções às quais é chamada.
Os conceitos de uma teoria são aprendidos numa compreensão anterior ao experimento. Se ao depois os conceitos são referendados ao mundo dos objetos reais, nem por isso a referência faz crescer sua compreensão. Ela diz simplesmente que os objetos, aos quais os conceitos se referem, ressoam dentro da teoria. A observação empírica tem pois a função de ser um indicador e a teoria nesse caso pode ser comparada a um ressonador: a experiência empírica intervém para pôr a teoria à prova. Se resiste, ela se confirma como empírico–formal, se fracassa, ela continua existindo simplesmente como formal-pura.
A compreensão, pois, que temos do mundo físico pelas ciências da natureza não é mais do que aquela oferecida pelo modelo das ciências formais. Qual é essa compreensão? É simplesmente operativa: a inteligência compreende vendo como funcionam os termos do sistema, vendo como se efetuam os liames dos diferentes termos entre si.
Pelas ciências empírico-formais não bem deixamos o mundo físico ser o que ele «possa» ser; antecipamo-nos, o colocamos dentro de um sistema e nele dizemos «tudo» o que o mundo é e possa vir a ser.
Por conseguinte, até as ciências empírico-formais (ciências da natureza), que à primeira vista parecem traduzir o mundo físico, são uma construção do espírito objetivante, que cria um campo operacional-teórico, mediante o qual se propõe compreender a priori os objetos da empiria. Parece que não temos outro meio de conhecer a realidade «cientificamente» senão reinventá-la teoricamente.
«A teoria representa apenas um mundo possível. Mas trata-se de saber o que há nela do mundo real. Para tanto é preciso fazer intervir o momento empírico, isto é, la mise à l’épreuve. Mas só podemos observar uma bem pequena parte do imenso oceano dos fatos, não tocamos o continuum real senão em alguns pontos. Buscamos precisamente saber se há ressonância entre a realidade e o nosso aparelho conceptual. Se verificamos uma tal ressonância, temos direito de pensar que há chances de nossa teoria ser correta, ao menos para um determinado domínio. Mas, evidentemente, isso não passa jamais de uma presunção. Em todo o caso, a teoria não é uma imagem do mundo, é apenas uma reconstrução conjetural da realidade» (J. Ladrière, L’articulation du sens. Paris 1970, p. 39).
Tocamos o continuum real em alguns pontos: imersos no contínuo da realidade, apenas conseguimos apreendê-la através de representações que são quais pontos, que entrelaçados formam uma rede discursiva. Nela vemos e dizemos o real. Tocamos em alguns pontos o real quando conseguimos colocá-lo na malha de nossas representações. «Ter ciência» é construir representações operativas da realidade. H20 toca a água em alguns pontos. Esse modelo de visualizar a água é eficiente, opera, é válido, é certo, é verdadeiro. A verdade é aqui tão-só a certeza que com tal sistema o sujeito assegura a possibilidade de agir sobre a realidade, transformando-a, isto é, conduzindo-a a amoldar-se ao modelo proposto.
As teorias que perfazem as ciências empírico-formais não são pois reveladoras da realidade como tal. Elas apenas nos oferecem uma série de conceitos operacionais pelos quais podemos operar os dados do real.
«O que podemos realmente atingir mediante as ciências particulares são todas as relações e os diferentes modos de relação dos elementos entre si» (Mach, Erkenntnis und Irrtum).
A ciência estuda pois as relações formais entre os elementos apreendidos em conceitos representados por sinais. Descoberta a relação que liga um fenômeno a outro, o cientista se defronta com outro problema: a medida dessa relação. A medida da relação é o que constitui a descoberta científica nas ciências empírico-formais.
Enquanto não for medida essa relação, a explicação científica permanece incompleta, isto é, puramente formal. Newton descobriu que todos os corpos se atraem (descoberta da relação) e formulou a medida: «na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias». Muitas vezes o espírito apreende a ligação dos fenômenos sem conseguir exprimir a medida da relação. A teoria da relatividade.
As leis das ciências não são meteoros dispersos no vasto campo dos fenômenos. Elas formam uma unidade, um sistema coerente, logicamente concatenado em todos os seus pormenores.
«A unidade sistemática, diz Kant, é o que antes de tudo faz do conhecimento comum uma ciência, isto é, de um simples agregado, um sistema», e acrescentava que por sistema é preciso entender «a unidade de conhecimentos múltiplos recolhidos sob uma única ideia» (Crítica da Razão Pura, Doutrina do método, cap. III).
Essas rápidas considerações sobre as ciências empírico-formais nos mostram que sua estrutura de saber não difere substancialmente das formais puras. O objeto das ciências empírico-formais, o mundo físico, é apreendido por conceitos formulados a priori, inter-relacionados num sistema lógico–formal considerado correto se nele ressoar funcionalmente o mundo físico. (Arcângelo Buzzi, “Introdução ao Pensar”)