Se examinarmos a interpretação que os doutores da Igreja dão sobre a essência da acídia, veremos que ela não é posta sob o signo da preguiça, mas sim sob o da angustiada tristeza e do desespero. Segundo Santo Tomás, que, em síntese rigorosa e exaustiva, reuniu na Summa theologica as observações dos Padres, ela é, precisamente, uma species tristitiae, e mais exatamente, a tristeza com relação aos bens espirituais essenciais ao homem, a saber, relativas à dignidade espiritual especial que lhe foi conferida por Deus. O que preocupa o acidioso não é, pois, a consciência de um mal, e sim, pelo contrário, o fato de ter em conta o mais elevado dos bens: acídia é o vertiginoso e assustado retrair-se (recessus) frente ao compromisso da estação do homem diante de Deus. Por isso, por ser a fuga horrorizada diante daquilo que não pode ser evitado de modo algum, a acídia é um mal mortal; ela é, até mesmo, a doença mortal por excelência, cuja imagem transtornada Kierkegaard consagrou na descrição do mais temível dos seus filhos: “o desespero que está consciente de ser desespero, consciente, portanto, de ter um eu no qual há algo de eterno, e agora desesperadamente não quer ser ele mesmo, ou desesperadamente quer ser ele mesmo”.
NOTA: “Acedia non est recessus mentalis a quocumque spirituali bono, sed a bono divino, cui oportet mentem inhaerere ex necessitate” [“A acídia não é um afastamento mental de algum bem espiritual, mas de um bem divino, ao qual a mente deve prestar necessariamente sua adesão”] (Summa theologica, II, 2.35). De acordo com a descrição feita por Guilherme de Auvérnia, o acidioso tem náusea do próprio Deus: “Deum igitur ipsum fontem omnium suavitatem [suavitatum? — N. T.] in primis fastidit acidiosus…” [“Portanto, o acidioso sente fastio antes de más nada por Deus, fonte de toda suavidade”] (GUILIELMI PARISIENSIS. Opera Omnia. Venetiis, 1591, p. 168). A imagem do recessus, do retrair-se, frequente na caracterização patristíca da acídia, aparece também, conforme veremos adiante, na descrição médica da melancolia, desde a medicina humoral até Freud.
[…]Santo Tomás capta perfeitamente a ambígua relação entre o desespero e o próprio desejo: “o que não desejamos intensamente” — afirma — “não pode ser objeto nem da nossa esperança nem do nosso desespero”; e se deve à sua equívoca constelação erótica o fato de que, na Summa theologica, a acídia não apareça oposta à sollicitudo, ou seja, ao desejo e ao cuidado, mas ao gaudium, a saber, à satisfação do espírito em Deus.
NOTA: “Ergo acedia nihil aliud est quam pigritia, quod videtur esse falsum; nam pigritia sollicitudini opponitur, acediae autem gaudium” [“Portanto, a acídia nada mais é que preguiça, o que parece ser falso; pois a preguiça opõe-se ao zelo, e a satisfação espiritual opõe-se à acídia”] (Summa theologica II, 2.35). Também Alcuíno insiste na exacerbação do desejo como marca essencial da acídia: o acidioso “torpescit in desideriis carnalibus, nec in opere gaudet spirituali, nec in desiderio animae suae laetatur, nec in adjutorio fraterni laboris hilarescit: sed tantum concupiscit et desiderat, et otiosa mens per omnia discurrit” [o acidioso “embaraça-se com desejos carnais, e não se deleita com a obra espiritual, nem se contenta com o desejo da sua alma, nem se satisfaz com a ajuda ao irmão em dificuldade; muito pelo contrário, ele só sente concupiscência e desejo, e sua mente, ociosa, vagueia de objeto em objeto”]. A vinculação entre acídia e desejo, entre acídia e amor, é uma das mais geniais intuições da psicologia medieval e é decisiva para se compreender a natureza deste pecado; isso explica por que motivo Dante (Purgatório XVII, 124) entende a acídia como forma de amor e, precisamente, como o amor “che corre al ben con ordine corrotto” [“que concorre para o bem em ordem corrompida”]. [AgambenE:27-29]