Uma potência nada mais é que um princípio de ação ou de paixão. Ora, a alma é o princípio das operações sensitivas. Portanto, as potências sensitivas estão na alma como em um sujeito. Portanto, é impossível que elas não permaneçam na alma separada, pois os acidentes desprovidos de contrariedade não se corrompem a não ser pela corrupção do sujeito.
O argumento é simples: a alma sendo o princípio das operações sensitivas, estas estão nela “como em um sujeito”. O que está na alma como em um sujeito é um acidente. Um acidente, se não há contrário suscetível de eliminá-lo e de sucedê-lo no sujeito, não pode ser destruído a não ser pela destruição do sujeito. As operações sensitivas não têm contrários. A alma sujeito–princípio das operações-acidentes sensitivos é indestrutível. Portanto, as operações sensitivas permanecem necessariamente na alma após a morte, isto é, após a separação da alma e do corpo.
Esse resumo de ontologia aristotélica opera uma equação princípio = sujeito governada em segredo pela assimilação da ação e da paixão a acidentes, cujo modo de ser é definido precisamente pela inerência a um sujeito, conforme a definição do acidente pelo esse in subiecto (έν ὑποκειμένω ἐίναι) no capítulo 2 das Categorias. Tem-se ali, com toda evidência, o terreno fértil à ideia de sujeito–agente: a de um sujeito que seria ao mesmo tempo princípio de operação. Ainda se está longe, ao que parece, do “sujeito moderno”: esse sujeito-operador que não é nem um “mim” nem um “eu”; é a alma. Tanto mais longe na medida em que, precisamente, a resposta de Tomás consiste em distinguir princípio e sujeito. Se a alma é [64] de fato, para ele, o princípio da operação sensitiva, o sujeito da operação não é a alma, mas o composto alma–corpo, que age por meio da alma. Mais exatamente: o composto alma–corpo é o sujeito das potências da parte sensitiva da alma; a própria alma não é senão seu princípio. Nenhuma operação da parte sensitiva da alma tem a alma como operador: é o composto que opera por meio da alma; é ele que vê, que ouve, que percebe; é ele, portanto, que tem a potência de ver, de ouvir e de perceber. Diante da questão colocada, Tomás responde então que a destruição do corpo implica a destruição das potências sensitivas que, na falta do composto, não têm mais sujeito; aquelas que, todavia, subsistem na alma como seu princípio, evidentemente sem ser exercidas, dado que o composto não é reconstituído pela ressurreição da carne38. Essa resposta, fundada na afirmação de que as potências sensitivas “não são da essência da alma”, mas sim “propriedades naturais”, “do composto como sujeito, e da alma como princípio”39 é solidária a uma antropologia não dualista que se pretende aristotélica, isto é, resolutamente antiplatônica: o homem tomasiano não é sua alma, mas composto de alma e de corpo. Apresentaremos, em seguida, suas teses principais, e poderemos seguir seu eco até na controvérsia de Descartes com Regius. Veremos também em que ela é ou não verdadeiramente aristotélica. Por ora, devemos mostrar apenas que os teoremas fundamentais que articulam o campo de presença de onde sairá a teoria clássica do sujeito já estão em obra no tratamento tomasiano do sujeito da operação sensitiva, ou seja, que os dois princípios da “denominação do sujeito pelo acidente” (PDSA) e da “su-jeição da ação na potência de um agente” (PSAPa) são parte integrante, e essencial, do raciocínio que autoriza a solução que ele defende. Isso é evidente que no início do respondeo, em que Tomás lança as bases teóricas de sua posição final:
É preciso dizer que as potências da alma não são da essência da alma, mas sim propriedades naturais que emanam de sua essência, como se depreende das questões precedentes. Ora, um acidente é corrompido de duas formas. Em primeiro lugar, por seu contrário, como o frio é corrompido pelo calor. Em segundo lugar, pela corrupção de seu sujeito: de fato, nenhum acidente pode permanecer após a corrupção de seu sujeito. Portanto, quaisquer que sejam os acidentes ou formas que não tenham contrário, eles não são destruídos a não ser pela destruição do sujeito. Ora, é manifesto que nada é contrário às potências da alma. Portanto, se elas se corrompem, só pode ser pela corrupção de seu sujeito. Logo, para saber se as potências sensitivas se corrompem, corrompido o corpo, ou permanecem na alma separada, cabe tomar como princípio da investigação a questão: qual é o sujeito de tais potências? Ora, é manifesto que o sujeito de uma potência deve ser aquele que dizem potente segundo essa potência, pois todo acidente denomina seu sujeito.
Ora, idêntico é esse que pode agir ou sofrer e esse que é agente ou paciente. Daí que é preciso que seja sujeito da potência esse que é sujeito da ação ou da paixão da qual a potência é o princípio. E é o que diz o filósofo Aristóteles no livro Do Sono e da Vigília: é a quem tem a potência que pertence a ação.
Esse texto é capital. Tomás nos ensina ai, de fato, que a fonte de PSAPa é uma passagem de Do Sono e da Vigília. O texto visado é 454a8: οὗ γὰρ ἡ δύναμις, τούτου καὶ ἡ ἐνέργεια. Ele se inscreve em um conjunto 45437-11 que sustenta que: [67]
Visto que, de outra parte, o fato de sentir não é próprio nem da alma nem do corpo (pois aquele em que há potência é também aquele em que há ato; e isso que se chama sensação, enquanto ato, é um certo movimento da alma por intermédio do corpo), está claro que essa afecção não é própria da alma e que um corpo sem alma não é tampouco capaz de sentir.
Se o texto de Aristóteles vai bem no sentido da tese toma-siana, a fórmula elíptica de Aristóteles em 454a8 não faz referência ao sujeito40: contudo, muitos o introduzem ali, do tradutor francês das Questões de Tomás (François Genuyt O. P.) ao tradutor inglês de Do Sono e da Vigília (J. I. Beare): um compreendendo que o sujeito da potência é o sujeito da ação41, o outro que the subject ofactuality is in every case identical with that of potentiality42-. A mesma doutrina com a mesma referência ao De Somno et Vigilia, figura no “respondeo” da Suma Teológica, Ia Parte, q. 77, a. 5, em que Tomás explica que uma potência ou faculdade só pode ter como sujeito aquilo a que pertence sua própria operação — o que quer dizer que, se essa ou aquela operação provém da alma, a potência correspondente será sub-jetivamente fundada na alma, enquanto que, se uma outra operação provém do composto alma–corpo, a potência correspondente será sub-jetivamente fundada no composto.
Eu respondo. É preciso dizer que o sujeito de uma potência operativa é aquele que é capaz de operar, pois todo acidente denomina seu próprio sujeito. Ora, é o mesmo que pode operar e que opera. É preciso, portanto, que uma potência tenha como sujeito esse a quem pertence sua operação, como diz o filósofo [Aristóteles] no início do mesmo livro Do Sono e da Vigília. Ora é manifesto, em função do que se disse, que há operações da alma que se exercem sem órgão corporal, como o pensar e o querer. Por consequência, as potências que são os princípios dessas operações estão na alma como em um sujeito.
Mas há outras operações da alma que se exercem por órgãos corporais, por exemplo, a visão, pelo olho, a audição, pela orelha. E o mesmo para todas as outras operações da parte vegetativa e sensitiva. Por consequência, as potências que são os princípios dessas operações têm como sujeito o composto, e não somente a alma.
Do complexo formado por PDSA, PSAPa e o conjunto dos princípios ou teoremas que eles comandam ou dos quais abrem a possibilidade teórica, pode-se de fato deduzir, como será o caso da Idade Média à modernidade, as seguintes proposições, que serão discutidas continuamente de um extremo a outro do nascimento do sujeito, a saber:
b. toda ação requer um sujeito
c. toda ação requer um agente que é um sujeito
a. toda ação requer um sujeito que é seu agente [LiberaAS:63-70]