tempo angustioso

O tempo se torna angustioso, quando deixa de ser a memória de algo, para tornar-se a memória de si mesmo; o tempo se liga à memória, tornando-se pessoal, vivencial. O tempo cristão se torna inteiramente pessoal, se adstringe inteiramente a esta única vida, desde que se perdeu a possibilidade, na qual acreditavam os platônicos, de explicar a reminiscência da felicidade perdida, por vidas pessoais anteriores. A reminiscência cristã da felicidade perdida não vem de vidas pessoais anteriores, mas dessa Iluminação Divina, explanada por Santo Agostinho, desse Mestre Interior, que nos fala do fundo da nossa subjetividade e que apela constantemente para a urgência do tempo, a urgência da salvação. O cristão, na sua existência irrepetível e única, faz a sua eternidade no seu tempo; como qualquer outro, ele nasce, vive e morre no tempo. Mas a possibilidade de um ponto de apoio num espaço particular sagrado, como por exemplo o espaço simultâneo do Centrum e do Mundus, esta possibilidade se extinguiu com a subjetivação do tempo, que implicou a planificação do espaço, tornando uniformes todos os espaços, de sorte que já não estamos no espaço sacral de nenhum Mundus, mas num tempo aflitivo em que nos salvamos e nos perdemos. Este é o tempo da preocupação, da angústia, Sorge, como diz Heidegger, por que nele eu me faço o que sou e o que me torno; é um tempo tendido para futuro, e nada obstante, feito só de passado, porque o presente, como bem via Santo Agostinho, está sempre a cair no passado, é um presente que já passou. Se o tempo fosse presente, seria então a eternidade e não o tempo; se o tempo fosse presente, não haveria angústia. É o que compreendeu Schopenhauer, cujo conselho, a quem quer afirmar a vontade de viver, é afirmar o presente com a sua eternidade, porque o tempo não é senão atributo do fenômeno. Mas o que sucede é que o fenômeno, para Schopenhauer, não tem em si a sua realidade, sendo a representação da Vontade de Viver; é então fácil aconselhar ao aflito transeunte do tempo, que afirme a eternidade da Vontade de viver, ignorando o tempo da sua existência como fenômeno. No Cristianismo, porém, este conselho não tem sentido, porque o fenômeno é uma realidade substancial, o indivíduo não é representação, mas pessoa. E é pessoa que tem em si um tempo limitado e único, um tempo que é devorado pelo passado e aspirado pelo futuro.

Se o espaço se planificou com o Cristianismo (pois não há o espaço sagrado e o espaço se tornou indiferente para a salvação), o tempo, ao contrário, sublinhou a sua heterogeneidade, o que sublinha também a sua angústia. A cada instante praticamos atos que podem decidir da eternidade. No tempo arcaico, os momentos eram heterogêneos, mas como derivado de uma hierarquia eterna, e não no sentido processual do tempo cristão: não há no Cristianismo dois momentos como o da Encarnação e o da Redenção; não há dois momentos como o da nossa morte; se no tempo está a Liberdade, na morte está o Destino. Inútil é comunicar ao cristão a fórmula da tranquilidade antiga: Onde estamos, a morte não está; onde a morte está, nós não estamos; inútil, porque estamos exatamente onde a morte está, porque somos os portadores da morte, e porque com a morte não morremos. É preciso compreender que só podemos morrer, com a condição de termos a consciência da morte, com a condição também de que a morte no tempo se refira ao Intemporal. Existem seres que não têm a consciência da morte; seres que se repetem, se multiplicam, seres que desaparecem, mas não morrem. O que faz com que se possa morrer é a consciência da morte, a consciência da responsabilidade diante da morte, pelo uso que fizemos da liberdade no tempo. Se a morte fosse a extinção, não referiríamos os nossos atos ao futuro desconhecido. No entanto, quanto mais solene um ato, mais vinculado está ele ao futuro, e o que faz a sua solenidade é a sua vinculação ao futuro. O ato do espírito se transcende a si mesmo, como o que se dirige ao intemporal. A fórmula de todo amor, que é o voto de fidelidade perpétua, revela a íntima conexão entre a tensão para o futuro e a Eternidade. Quanto mais tenso um estado vital, mais funda a sua referência ao infinito da nostalgia. Compreende-se aqui por qual motivo o Romantismo associou tão estreitamente o amor e a morte. Os amantes que morrem de amor, como Tristão e Isolda morreram, supõem a fixação pela eternidade, de um sentimento que em vão teriam procurado fixar num tempo sem eternidade. É no amor que a alma dilacerada sente a nostalgia de uma obscura integridade primitiva. Mas é no amor também que se revela toda a angústia da eternização impossível do tempo. O ato sexual visa a eternidade, pela reprodução da vida; mas, multiplicando o ser, a sua contradição é que perpetua o tempo e imortaliza a morte [Como se lê na extraordinaria exégèse de Máximo, o Confessor, dada por Hans Urs von Balthasar em sua Kosmische Liturgie, 1941 e trad. francesa, Aubier, 1947.].

Sob nenhum ponto de vista é discutível a tese de que realmente o Cristianismo produziu o tempo angustioso, o tempo da salvação. O tempo, tal como é vivido, depois do Cristianismo, inclusive pelos hereges, pelos materialistas e os ateus, é o tempo angustioso, o tempo que perturba. A angústia do tempo revive em todas as Filosofias que dissolvem o tempo na Eternidade ou que desdobram a Eternidade no tempo. Nas Filosofias do Cristianismo contemporâneo, e em particular no Idealismo alemão, se exprime de modo claro a tensão do futuro. Porém o tempo como vivência se manifesta de maneira capital na música do contraponto, a música da tensão angustiosa, a música da reminiscência. Na mais emocional de todas as artes, na arte única, também é mais angustiosa a vivência do tempo. Mas exatamente a música revela esta verdade profunda, que a tensão para o tempo não se explicaria se o tempo não fosse tocado pela Eternidade. A música desperta sentimentos tão fundos, que parecem vir da origem do tempo, onde o tempo tem o seu ponto de conexão com a Eternidade. O tempo não poderia ser vivido sem a Eternidade que paira sobre o tempo. O que procuramos no tempo é a Eternidade, se não o tempo não teria sentido. O tempo é um tempo para; e por isso, nos Padres gregos e nos filósofos românticos, o mundo se resolve por fim no Absoluto porque o tempo pelo tempo seria um tempo absurdo. Na música, a descoberta do leit-motif teve por finalidade conjugar as variações do tema com a repetição do motivo eterno. De Wagner se diz que procurou criar a música do infinito, como superando o tempo e como desenvolvendo no tempo a simbólica dos mitos originários. [Barbuy]