libertinismo

(fr. Libertinisme).

Corrente anti-religiosa que se difundiu sobretudo em ambientes eruditos da França e da Itália na primeira metade do séc. XVII; constitui a reação — em grande parte subterrânea — ao predomínio político do catolicismo naquele período. Não tem ideias filosóficas bem determinadas, e a ela pertenceram: católicos sinceramente ligados à Igreja, mas que achavam impossível aceitar integralmente sua estrutura doutrinária, como Gassendi, Gaffarel, Boulliau, Launoy, Marolles, Monconys; protestantes emancipados de qualquer preocupação religiosa, como Diodati, Prioleau, Sorbière e Lapeyrère; e céticos declarados que se remetem a doutrinas do paganismo clássico ou pelo menos à forma por elas assumida no humanismo renascentista, como Guyet, Luillier, Bouchard, Naudé, Quillet, Trouiller, Bourdelot, Le Vayer. Portanto, a propósito do libertinismo, não é possível falar em corpo doutrinal coerente, mas sim de certo número de temas comuns, que podem ser resumidos da seguinte forma:

1) Negação da validade das provas da existência de Deus e da possibilidade de entender e defender os dogmas fundamentais do cristianismo.

2) Negação da moral eclesiástica e, em geral, da moral tradicional, e aceitação do prazer como guia ou ideal para a conduta da vida. O significado da palavra libertino no uso corrente deriva exatamente desse aspecto.

3) Aceitação da doutrina da ordem necessária do mundo, na forma como havia sido elaborada e defendida pelos aristotélicos do Renascimento; por conseguinte: a) negação da liberdade humana; b) negação da imortalidade da alma; c) negação da possibilidade do milagre, interpretado como fruto da imaginação ou como fato natural fora do comum. Estes aspectos doutrinais ligam o libertinismo ao aristotelismo do Renascimento.

4) Tese de que a religião é, em geral, um produto do embuste das classes sacerdotais.

5) Aceitação do princípio da “razão de Estado”, isto é, do maquiavelismo político.

6) Destruição de crenças e práticas religiosas, sua ridicularização e, por vezes, sua tradução em imagens obscenas.

7) Fideísmo, que é a aceitação declarada, sincera ou não, das crenças tradicionais, em oposição às conclusões da razão, segundo o princípio da “dupla verdade” do aristotelismo renascentista (e do averroísmo medieval).

8) Caráter aristocrático atribuído ao saber, em particular à reflexão filosófica, e limites impostos à sua difusão e ao seu uso, para evitar o choque com os interesses do Estado e das instituições a ele ligadas.

Este último aspecto, mais que qualquer outro, marca a diferença radical entre libertinismo e Iluminismo, que consiste em romper os freios da crítica racional, em praticá-la em todos os campos (portanto também no campo político, além do religioso), na vontade de comunicar os resultados dela a todos os homens e de utilizá-los para a melhoria da vida humana. Contudo não há dúvida de que o libertinismo é um elo importante entre o espírito do Humanismo e o espírito do Iluminismo. Seu melhor historiador, R. Pintard, assim resume seu pensamento sobre ele: “A se acreditar — como tudo leva a crer — que o surto do espírito filosófico do fim do séc. XVTI é em grande parte continuação do Renascimento do séc. XVI, também será preciso concluir que o libertinismo triunfante dos Fontenelle e dos Bayle não teria existido sem o libertinismo militante dos Le Vayer, Gassendi e Naudé, que também foi o libertinismo sofredor, combatido, embaraçado por escrúpulos e temores, que só chegou a expressar-se renegando-se” (Le lihertinage érudit dans la première moitié du XVIIe siècle, 1943, I, p. 576). (Abbagnano)