VIDE epoché
A doutrina de Edmundo Husserl, bem como a de Bergson, marcaram, para lá do kantismo, um regresso a Descartes. Este regresso apresenta-se, entretanto, muito mais vincado e categórico na fenomenologia do que no bergsonismo e também muito mais conforme com a essência do cartesianismo.
A fenomenologia de Husserl foi um método antes de se tornar explicitamente numa doutrina. Partindo da crítica das matemáticas, Husserl pretendeu descobrir em primeiro lugar um processo que tornasse possível a aquisição das verdades fundamentais e a sua justificação apodíctica : com este fim, a sua regra essencial consistiu, desde o princípio, em ir às coisas em si mesmas ( Zu der Sachen selbst) para aprender delas o que elas nos ensinam sobre si próprias, eliminando, por conseguinte, radicalmente, quaisquer preconceitos e teorias de antemão estabelecidas sobre o real. Este ponto de partida implica, portanto, dois princípios : um, negativo, que rejeita tudo o que não é apodicticamente justificado, isto é, tudo aquilo que não é justificado de forma que o contrário apareça como absolutamente inconcebível ; o outro, positivo, que apela para a intuição imediata das coisas, visto que esta intuição, e só ela, pode ser a origem primeira de qualquer certeza. A inclusão entre parêntesis e a intuição são, pois, as duas regras fundamentais do método fenomenológico.
No entanto, o termo « coisas», não deve induzir a erro. Em virtude da « epoché » ( ou seja, a colocação entre parêntesis de tudo o que, segundo Husserl, não é apodicticamente justificado), as únicas coisas que nos são dadas verdadeiramente são os fenômenos. A existência ( ou a « coisa em si» ) não é de forma alguma uma evidência apodíctica — ainda que a coisa em si, ou a existência como fenômeno, seja um dado como qualquer outro. O domínio da intuição fenomenológica será, portanto, constituído por todos os fenômenos apresentados à consciência, isto é, por tudo o que se manifesta de qualquer forma e por qualquer motivo — com exclusão, por consequência, de tudo o que é do domínio não apodíctico do em-si não manifesto e não manifestável ; e a tarefa da fenomenologia consistirá em descobrir e em descrever com o maior rigor possível o universo dos fenômenos, esforçando-se, ao mesmo tempo, por apreender as relações que os ligam entre si, o que, evidentemente, equivale a ultrapassar a pura descrição e a interpretar os fenômenos ou a definir-lhes o sentido. «A explicação fenomenológica, escreve Husserl, faz aparecer aquilo que está «implicado» no sentido do cogitatum sem ser intuitivamente dado, ao representar as percepções potenciais que tornarão visível o não-visível» (Méditations cartésiennes, pág. 41). Sendo assim, os vários tipos de fenômenos darão origem a métodos especiais de investigação, de descrição e de interpretação.
Podemos, portanto, dizer que a fenomenologia, na sua qualidade de método, se afirma primeiramente como uma espécie de positivismo. Entretanto, isso não significa de nenhuma forma que rejeite a filosofia propriamente dita ou a metafísica. E tanto assim que a orientação fenomenológica não tardou em tornar-se realmente metafísica. Por outro lado, o método já implicava, por si mesmo, uma doutrina. Pelo fato de a « epoché» ser a colocação entre parêntesis de todo o domínio da existência e de não permitir que permaneça diante dos olhos do espírito senão o puro fenômeno, a fenomenologia de Husserl toma um aspecto de idealismo, deduzindo o universo às cogitationes, ao conteúdo imanente da consciência, só admitindo como tipo de conhecimento certo a intuição das essências ( Wesenschau ). E, de fato, é para um idealismo radical que Husserl se orienta cada vez mais.
Se quisermos atingir verdadeiramente o apodíctico, como forma de certeza, a inclusão entre parêntesis, segundo Husserl, deve incidir, não somente sobre as realidades do «mundo», mas ainda sobre o eu natural e sobre os seus atos. O Cogito cartesiano detém-se indevidamente num eu substancial que, como tal, nada mais é do que uma coisa do mundo e nunca o puro fenômeno que o método fenomenológico encara. Diz Heidegger (SZ, pág. 183), referindo a opinião de Dilthey, que o erro de Descartes foi ter concebido o sum do Cogito da mesma forma que o est da res, supondo sem razão que a inteligibilidade era unívoca. Precisa, na verdade, de uma colocação entre parêntesis mais profunda, que incida sobre a sujeito empírico e seus atos subjetivos, para os reduzir ao estado de puros fenômenos. Só desta forma poderemos alcançar o domínio da pura consciência transcendental, na qual apenas subsistem os puros fenômenos transcendentais, com o Ego transcendental que é, em suma, a primeira existência apodicticamente certa que a regressão fenomenológica encontra. É impossível, efetivamente, supor que o Ego transcendental seja em si somente um fenômeno, quando não, cairíamos numa regressão ao infinito, que transformaria todo o universo dos fenômenos em pura ficção, em ilusão absoluta.
Mas isto ainda não é tudo. A investigação fenomenológica não poderá dar-se como acabada com a descoberta do Ego transcendental : este Ego é, na realidade, múltiplo, porque compreende ou implica uma série de outros Ego transcendentais. Estes constituem, isto é, determinam, os fenômenos da consciência transcendental e natural em toda a sua variedade. Mas devem possuir também, para além da sua multiplicidade, um princípio de unidade, que será o primeiro constituinte — um Ego absoluto, universalmente constituinte e nunca constituído, que é Deus. Deus vive a sua própria vida constituindo, no e pelo seu Ego transcendental, todos os Ego transcendentais secundários, com todas as subjetividades que os compõem e que eles, por sua vez, constituem. [Jolivet]