A transcendência é fonte de incertezas e a filosofia procura uma base indubitável; por isso é que se pratica a chamada epoché ou redução fenomenológica. Deve-se no entanto distinguir entre epoché (suspensão) e redução. A primeira é suspensão da crença na existência da realidade, colocação desta entre parêntesis, fora de circuito, suspensão da tese do mundo, do viver dirigido imediatamente às coisas; porque pratico essa epoché é que posso, consecutivamente, reduzir o mundo, no seu valor de ser ingênuo, ao fenômeno transcendental e revelar este último como correlato imediato da consciência.
NOTA: Os termos epoché e redução aparecem, contudo, quase sempre indiferentemente para designar o mesmo conceito. (Ideen I, §31, Cartesionische Meditationen § 8, Die Idee der Phänomenologie, pp. 39, 44, 45). Em rigor, porém, são dois conceitos distintos, embora relacionados. Graças à prática da epoché é que se consegue a redução (Cf. Krisis, § 41 e Erste Philosophie II, pp. 178). J. Fragata (A fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia, Braga, 1959, pp. 93, nota 40) dá um esclarecimento muito feliz ao afirmar: «’Epoche’ refere-se, portanto, mais diretamente ao termo a quo; ‘redução’, ao termo ad quem. Como, porém, exercer a ‘epoché’ é simultaneamente ‘reduzir’, os dois termos são empregados indiferentemente pelo próprio Husserl».
Temos por um lado a realidade transcendente, que corresponde às coisas enquanto existentes fora ou para além da consciência; por outro, toda a realidade transcendental, que se aplica às «coisas» enquanto reduzidas à consciência. Ambos os mundos são reais (wirklich) porque nenhum deles é ilusório; o primeiro, contudo, é real, num sentido «natural» ou prático, que não interessa ao filósofo. O segundo é «real» num sentido primordial e apodítico.
A epoché vai necessariamente afetar todas as ciências que dizem respeito a esse mundo natural. Na medida em que representam fatos culturais são postos fora de circuito os produtos da civilização, obras técnicas e de belas artes, o Estado, os costumes, o direito, a religião, em suma, todas as ciências da natureza e do espírito, bem como a matemática e as disciplinas afins.
Efetuando a redução de todas as coisas ao fluxo da consciência, abandonando assim o nível do mundo natural, resta ainda uma transcendência sui generis: referimo-nos à transcendência de Deus, que não se dá em Abschattungen, antes aparece como um absoluto exigido pela teleologia admirável que se manifesta no mundo natural. Transcendência polar real desse mundo e, portanto, válida dentro dos limites intra-mundanos.
Desta forma todas estas realidades ficam reduzidas a fenômenos da minha subjetividade, do meu eu. [Morujão]