transcendentalidade

Na ontologia é costume considerar-se o conceito de ser como um conceito universal, genérico ou específico. Neste caso, ser seria apenas um esquema abstrato das notas universalizantes que têm todos os entes.

Duns Scot opunha-se a essa opinião, afirmando a univocidade do conceito de ser.

O conceito de gênero inclui o das espécies, que entram na sua extensão, no que elas têm de comum, mas exclui o que elas têm de próprio, que é a diferença específica, que permanece fora do conceito, como, por exemplo, homem e cavalo estão implicados no gênero animal, enquanto seres animados, mas a diferença específica de homem, a de ser racional, não a possui o cavalo, que dele é ausente.

Individualmente, o mesmo se observaria, pois um indivíduo, Paulo, que está incluído como ser racional, em homem, não está enquanto louro.

Mas o conceito de ser é diferente, porque ele engloba, não apenas o que as espécies têm de comum, bem como os indivíduos, mas também as diferenças específicas e individuais.

Assim, no indivíduo Paulo, o ser animal é, o ser homem é, o ser louro é.

Como chamam os ontologistas de conceito transcendental aquele que é atribuído aos seres que entram na sua extensão, não somente no que têm de comum, mas também no que têm de próprio, o conceito ser é um conceito transcendental.

Entretanto, algumas observações decadialécticas caberiam aqui.

Se homem pertence, como espécie, ao gênero animal, podemos dizer que todo homem é um animal, mas nem todo animal é um homem, porque homem tem uma diferença específica que o diversifica das outras espécies de animal.

Mas precisamos distinguir: o gênero, como esquema abstrato, construção operatória da nossa razão, e o gênero como real-real.

Esta macieira, aqui, e aquela macieira, ali, e as macieiras dispersas em todo o mundo, topicamente consideradas, estão separadas umas das outras. Mas a forma da macieira é a mesma em todas elas. Todas elas atualizam uma forma da macieira comum, que as distingue das outras árvores. E essa distinção não é uma mera lucubração do espírito humano, porque as macieiras têm, em si, aquele número (no bom sentido pitagórico de plethos, número de conjunto), que as torna, embora quimicamente compostas dos mesmos elementos que as outras árvores, diferentes das outras, o que permitiu ao ser humano classificá-las, segundo normas científicas, como procede, por exemplo, a botânica.

Como série, as macieiras do mundo estão englobadas num esquema abstrato, que é apenas um esquema do esquema da forma concreta da macieira. Há, assim, esquemas eidéticos, esquemas abstratos, construídos pelo homem, e esquemas da forma concreta dos fatos da natureza, que a ciência procura captar.

Pode o esquema abstrato do homem, o eidético, não corresponder totalmente (totaliter) ao esquema da forma concreta do fato (tensão concreta). Assim o que estruturamos abstratamente no conceito macieira não tem tudo quanto é na macieira o seu plethos, que lhe dá a tensão de macieira, e que cabe à ciência estudar.

Assim o nosso conceito de animal, que é um esquema abs-trato, contém as notas que encontramos em comum nos animais, mas o animal, enquanto tal, que há também no homem, isto é, como esquema da forma concreta biológica, não se esgota naquele conceito, que é um esquema (intentionaliter) de um esquema (realiter). Neste caso, no animal, perguntamos, como gênero na natureza e não nos esquemas abstratos, não está contido em ato as notas comuns e, em potência, o que corresponde às diferenças específicas?

As diferenças específicas são atualizações de possibilidades que permitem distinguir, diferenciar as espécies, mas elas, como componentes da realidade, estão implicadas no gênero. Tanto o animal podia ser homem que o homem, sendo animal, é também racional. Portanto, ao animal cabia a possibilidade de receber uma alma, como o afirmam as religiões, outorgadas pela divindade, não importa, mas o que importa é poder a animalidade alcançar a hominilidade, por providência divina ou por evolução, ou por outro meio qualquer. E se podia, continha em si, em potência, a capacidade, pelo menos, de receber a hominilidade. E essa hominilidade, em potência, não seria um mero nada, pois se o fosse não se atualizaria.

E aqui se esclarece nossa crítica feita à razão em “Filosofia e Cosmovisão”. Como a razão tem dificuldades para racionalizar a potência, sempre obscura e misteriosa para ela, dando mais atenção ao ato, nos conceitos, que são elaborados operatoriamente, são consideradas, quase sempre, apenas as notas que em todos se atualizam. Ela prefere considerar como diferença específica (que o é na verdade), aquelas que se atualizam em alguns e que, por isso, distinguem a estes de todos os outros.

Esse divórcio entre o esquema abstrato da razão e o esquema da forma concreta dos fatos, criou uma verdadeira crise nas especulações filosóficas, (crisis abismo, no genuíno sentido etimológico), que a decadialética, pela sua visão global, procura ultrapassar. E para tanto é preciso distinguir os conceitos nos planos e campos em que são aplicados, como nos casos que estudamos, evitando-se, assim, as confusões que daí decorrem, e que obscurecem o pensamento filosófico, em vez de clareá-lo. [MFS]