Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? [Nietzsche, Assim falou Zaratustra]
36. «O Homem é algo que deve ser ultrapassado», o homem é o que tem de se ultrapassar. Não me ocupo nem me preocupo com o que Nietzsche entendia por «ultrapassagem», de como queria que o homem se ultrapassasse. Para mim, o filósofo só me diz que o homem tem de transpor limites, que o homem é transposição de limites, que só é homem aquele que os transpõe, quem os transpôs. O homem não é o Homem definido pelo Mundo que faz, virtualmente determinado pelo Mundo a fazer, que é o próprio «afazer». O homem é só o que, saído dos Infernos, virá dizermos que lá desceu; é só aquele que desceu aos Infernos. No final dos três parágrafos precedentes, ficou escrito: 1) o lado religioso do mito (da Descida aos Infernos) é um ritual de iniciação; 2) uma [60] catábase é o superlato mito de um ritual de «passagem»; 3) catábase é sinal de conversão ou reversão, em todo o caso de metamorfose. Das três vezes, a tônica recai sucessivamente em «iniciação», «passagem» e «metamorfose», e as três palavras estão na mesma linha em que se começa por dizer que o homem não se define, na medida em que não há limite que o defina. «Iniciação» podería designar um primeiro início, mas nada impede supor que a iniciação, por muitas vezes que se renove, de cada vez não ponha início diante de um término negado. O mesmo se diria de «passagem»: o homem passa além de cada limite que se lhe depare, dentro ou fora dele. «Metamorfose» diz que a iniciação e a passagem transmutam a forma interna de quem se inicia e se reiniciou, de quem passa e voltou a passar do que foi ou é, para o que será. Mas lembremo-nos, homem e mundo são solidários, projeções do mesmo Projeto [projeto]. De modo que «iniciação» nos põe a caminho de um mundo para outro; «passagem» é o de um mundo para outro e «metamorfose» minha é também metamorfose do mundo. Se me enviam em outro início, se me fazem passar outro limite, se, pelo início e pela passagem, mudo de forma, da mesma forma de forma o mundo muda; mas se, iniciado, me ultrapassei, sou outro que não era, e outro é o mundo em que vim a ser outro. Não há mudança de forma, mas alteração que vem das próprias raízes do ser do que eu sou e do ser do que o mundo é. Ritual de iniciação na Excedência não pede celebrar-se no Mundo, por Homem que persiste em sê-lo. Mundo e Homem são encantamentos, coisificações do que, naturalmente, não é coisa nenhuma. Quanto urgia sair dos Infernos. Mas não só para dizer-se que lá se havia descido, embora isso não seja pouco. Pouco não é, mas também não é quanto baste a quem nada basta. A quem nada basta, por pura excendência que é, tem de atravessar o mundo a que, saído dos Infernos, acedeu, esse e outros cujos limites se disponha a transpor, até se abeirar do último, que já mundo não seja. Dir-se-ia que cada um é Purgatório. Mas ai de quem se detenha em algum; esse se converterá em Inferno de muito mais estreita porta. De mundo em mundo, as portas se vão estreitando; e tão estreita é a última que, por ela, só «eu» posso sair sem «mim»; «eu» a transponho, deixando-«me» para trás. Quem se quer aventurar a semelhante aventura? [EudoroMito:60-61]