sobrevivência

VIDE imortalidade


Vimos anteriormente que, no surgimento da sociedade, foi a vida da espécie que, em última análise, se afirmou. Teoricamente, o ponto de inflexão da insistência sobre a vida “egoísta” do indivíduo, nos primeiros estágios da era moderna, para a ênfase posterior na vidasocial” e no “homem socializado” (Marx), ocorreu quando Marx transformou a noção mais grosseira da economia clássica – de que todos os homens, na medida em que agem de algum modo, agem por razões de interesse próprio – em forças de interesse que informam, movimentam e dirigem as classes da sociedade, e mediante seus conflitos dirigem a sociedade como um todo. A humanidade socializada é aquele estado da sociedade no qual impera somente um interesse, e o sujeito desse interesse são as classes ou o gênero humano, mas não o homem nem os homens. O importante é que, agora, mesmo o último vestígio de ação que havia no que os homens faziam, a motivação implicada no interesse próprio, desapareceu. O que restava era uma “força natural” a força do próprio processo vital, à qual todos os homens e todas as atividades humanas estavam igualmente sujeitos (“o próprio processo de pensar é um processo natural”)86 e cujo único objetivo, se é que tinha algum objetivo, era a sobrevivência da espécie animal humana. Nenhuma das capacidades superiores do homem era agora necessária para conectar a vida individual à vida da espécie; a vida individual tornara-se parte do processo vital, e o necessário era apenas trabalhar, isto é, garantir a continuidade da vida de cada um e de sua família. Tudo o que não fosse necessário, não exigido pelo metabolismo da vida com a natureza, era supérfluo ou só podia ser justificado em termos de alguma peculiaridade da vida humana em oposição à vida animal – de sorte que se considerou que Milton escrevera o seu Paraíso perdido pelos mesmos motivos e em decorrência de anseios semelhantes aos que compelem o bicho-da-seda a produzir seda.

Se compararmos o mundo moderno com o mundo do passado, veremos que a perda da experiência humana acarretada por esse desdobramento é extraordinariamente marcante. Não foi apenas, e nem sequer basicamente, a contemplação que se tornou uma experiência inteiramente destituída de significado. O próprio pensamento, quando se tornou um “cálculo de consequências” passou a ser uma função do cérebro, com o resultado de que se descobriu que os instrumentos eletrônicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A ação logo passou a ser, e ainda é, concebida em termos de produzir e de fabricar, exceto que o produzir, dada a sua mundanidade e inerente indiferença à vida, era agora visto como apenas uma outra forma de trabalho, como uma função mais complicada, mas não mais misteriosa, do processo vital. [ArendtCH:C45]