As quatro questões colocadas em 1991 por Vincent Descombes, leitor de Paul Ricoeur [P. Ricoeur, Soi-même comme un autre.], que, em “O Poder de Ser Si” [V. Descombes, “Le pouvoir d’être soi. Paul Ricoeur. Soi-même comme un autre”, Critique, 529-530, pp. 545-576.], articulam gramática filosófica, filosofia da ação, metafísica e filosofia do espírito, são, em sua formulação e em sua própria solidariedade, a expressão filosófica mais adequada do complexo que tentamos traçar arqueologicamente. Mais que o tratamento dos problemas — isto é, 1º para a gramática filosófica: “Que diferenças notáveis existem, do ponto de vista do emprego, entre essas palavras que alinhamos muitíssimo preguiçosamente em uma única categoria de pronomes pessoais (e, particularmente aqui, eu, ele, mim, lhe, ela, si)?”; 2º para a filosofia da ação: “Qual é o estatuto das intenções de agir? Elas são antes de tudo propriedades da ação ou propriedades do agente?”; 3º para a metafísica: “É preciso distinguir, [37] como propõe Ricoeur, dois conceitos de identidade, a identidade como mesmidade (idem) e a identidade como ipseidade (ipse)?”; e 4º para a filosofia do espírito: “Qual é, portanto, esse si que figura na expressão a consciência de si?” – é o “campo de presença” de O Si Mesmo como um Outro (o livro-mestre discutido por Descombes) que interessa em especial à arqueologia do sujeito. Não é nossa intenção retomar aqui como tal o projeto de Ricoeur, o da hermenêutica de si, na medida em que ele se distingue da filosofia do sujeito ou de sua variante “cartesiana”, a “filosofia do ego” ou “egologia”, nem relançar [38] por nossa vez a “querela do cogito”, nem arbitrar entre a posição “indireta” do si em Ricoeur e as duas posições “imediatas”, ditas do “cogito exaltado” (“posição direta” ou autoposição) e do “cogito humilhado” ou “anti-cogito” (ou “deposição direta”). Não faz parte tampouco de nossa proposta questionar a pertinência do diagnóstico feito por Descombes sobre tal “querela”, a saber, que ela “versa sobre os pronomes pessoais”, na medida em que tanto a filosofia do eu quanto a “doutrina do anti-cogito” têm em comum a mesma “premissa decisiva: ele só é verdadeiro sujeito na primeira pessoa”. Por uma razão simples: nós partilhamos esse diagnóstico, mas nosso objetivo é menos intervir na discussão das teses em presença, do que reconstruir sua proveniência historial, propor ou assegurar sua “traçabilidade”. As doutrinas do “cogito humilhado” têm uma pré-história: o apelo ao “processo sem sujeito” do qual “se deve falar na terceira pessoa” que se confronta com a primeira pessoa exaltada na egologia; o recurso a frases como [39] ‘Ele pensa em mim” ou “isso fala” – essa “verdade surpreendente embora a psicologia e a etnologia a tenham tornado mais familiar para nós”, descoberta, segundo Lévi-Strauss, por Rousseau, a saber, “que existe um ‘ele’ que se pensa em mim, e que me faz primeiro duvidar se sou eu que penso” [Cf. Cl. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale deux, p. 49.] –, inspiram em Descombes um comentário de gramática filosófica, colocando um contra o outro, Ricoeur e o grande etnólogo:
De onde esse “ele” pode ter saído senão da nominalização do si? Ele se pensa em mim: o problema é que essa frase, pois ela está nele, autoriza que se coloque a questão do referente. O si foi hipostasiado. Quem pensa em mim e que pensa ele? É ele quem pensa (não eu), e ele pensa ele mesmo. Eis que o si mesmo foi metamorfoseado em um ele mesmo. Lévi-Strauss nominaliza o pronome si a fim de poder opor dois pretendentes ao título de pensador de meus pensamentos, mim e ele. Mas é justamente para sair do conflito entre eu e ele que Ricoeur, ele também, fala do si. As doutrinas são exatamente opostas.
Nossa questão é diferente. Trata-se de remontar, trabalhando o arquivo filosófico, àquilo mesmo que tornou possível a articulação das quatro disciplinas ou vias invocadas por Descombes para pensar as relações existentes entre o eu, o mim, o si, e… o “ele” ou o “isso”. “De onde sai esse ‘ele’ é uma boa pergunta. Mas não é a única. É preciso acrescentar esta outra: de onde vem que o que autoriza a colocar a questão do referente de ‘ele’ em ‘ele se pensa em mim’ possa ser descrito filosoficamente a partir de uma asserção tal como ‘o si foi hipostasiado’? E muitas outras, que são levantadas à medida que se considera mais de perto a linguagem ou a metalinguagem teórica utilizada por Descombes na discussão das teses de [40] Ricoeur, tanto no artigo de 1991 quanto na admirável súmula que é O Complemento de Sujeito [V. Descombes, Le Complément de sujet. Enquête sur le fait d’agir de soi-même]. [LiberaAS:37-40]