Tomemos o simples exemplo dos livros IX e XII da Metafísica, nos quais Aristóteles nos fala do motor imóvel. É claro que a questão não é simples, porque essa passagem foi tomada, ao longo da História da Filosofia, como o modelo para se pensar o ente supremo, o princípio das coisas e o coroamento da totalidade. E se Aristóteles não tivesse escrito aquela obra, à qual estamos presos por uma facticidade impassível e ingênua?
Como leitores, intérpretes e autores, por um lado, e como participantes de uma história, de uma cultura, de uma visão de mundo, por outro, teríamos uma tarefa muito diferente se simplesmente disséssemos que esse foi apenas o modo de um grande clássico dizer algo no seu tempo, que era algo como o coroamento das questões complexas como origem, movimento, tempo e perecimento das coisas no mundo, que para os gregos se regiam pelo eterno retorno do mesmo. Sabemos que todo o movimento aristotélico é pensado em sua origem como estando amarrado à questão da atração do mais perfeito. E por isso que o mundo se move em direção do motor imóvel, [Hamesse, Jacqueline. Les auctoritates Aristotelis: un florilege medieval. Paris: Publications Universitaires, 1974, p. 137: “Primus motor movet sicut animatur et desideraturi’ (“O primeiro motor move assim como anima e é desejado”).] o qual nada tem a ver com o movimento explicado pela Filosofia medieval, atrelado ao princípio da causalidade eficiente, por causa da narrativa da criação. Em resumo, para uns do nada nada vem e para outros do nada tudo vem por uma causa primeira. Não vamos nos ater a discussões filosóficas sobre o que nisso seria defensável. [ErStein2014:23]
[…] Consideremos Aristóteles um filósofo empirista que naturalmente escreveu vários livros (de Lógica) como ferramenta para as suas análises, e que dedicou seus estudos a uma grande variedade de materiais empíricos. Sobrara-lhe, no entanto, um campo em que percebeu que deveria procurar uma universalidade que não derivava da empiria. É por isso que ele fundou a epistéme zetoumene, a ciência procurada, que trataria das primeiras causas e do ente enquanto ente juntamente com o einai (ser). O filósofo não desenvolveu para isso um nome específico, além de chamá-la de Filosofia primeira. Não denominou essa ciência nem de ontologia e nem de teologia. Diante do movimento, do surgimento e do perecimento do tempo, no entanto, o filósofo se perguntou pelas origens desses fenômenos. Como as respostas não podiam ser empíricas, porque levariam necessariamente a uma circularidade inaceitável, ele saiu dessa situação paradoxal e lançou uma hipótese que o reconduziu para a escola de seu mestre Platão. Não há uma causa eficiente que inicie o movimento, isto é, pela qual tudo deveria começar do nada. Todas as coisas sublunares são atraídas pelo mais perfeito. É para isso que Aristóteles estabelece a sua teoria do motor imóvel. [Ibid., p. 138: “’Primum principium extra se nihil intelligit’ (“O primeiro princípio nada conhece fora de si”).] Mesmo não sendo conhecido, e nada conhecendo das coisas sublunares, ele atua como causa final de todo movimento. Desse modo, bastava Aristóteles definir esse motor imóvel e achar um lugar no seu cosmos de esferas. [Ibid., p. 137: “A primo principio dependet caelum et tota natura” (“Do primeiro princípio dependem o céu e toda natureza”).] [ErStein2014:27]