potências afetivas

Consideremos o artigo com o qual Tomás de Aquino, na Summa, inaugura seu tratado (Ia Pa, q. 80 a. 1). A existência de uma vida apetitiva ou afetiva é um fato de experiência. Mas, reconhecer no princípio desta vida, a existência de potências especiais, pode trazer dificuldades. Não se poderia dizer que a apetição, sendo um fenômeno totalmente geral encontrado nos seres inanimados, como também nos viventes, é apenas a inclinação que se segue à natureza de cada ser? Isto aparece, em particular, no caso das faculdades da alma, que parecem ordenar-se por si mesmas a um objeto. Por que, pois, requerer, ao lado dessa inclinação de natureza, o exercício de um poder especial de apetência?

Tomás de Aquino responde a esta dificuldade lembrando o princípio que vai dirigir toda a questão: a toda forma segue-se uma tendência, “quamlibet formam sequitur aliqua inclinatio”. É assim que o fogo é por natureza inclinado para os lugares superiores, e tende a gerar fogo. Dois casos podem, então, apresentar-se:

– o dos seres que são destituídos de conhecimento: nestes encontra-se apenas uma forma que os determinar segundo o seu ser próprio e à qual segue-se uma inclinação natural que se denomina appetitus naturalis;

– o dos seres que têm conhecimento: aqui, com no caso precedente, encontra-se uma forma e uma inclinação natural, mas ainda, por causa da amplitude desses seres, encontram-se, nas potências de conhecer, as formas das outras coisas que foram recebidas sob um modo mais elevado de existência. A estas formas eminentes deve corresponder uma inclinação, de um tipo igualmente mais elevado, que levará o ser dotado de conhecimento para o bem apreendido, e esta inclinação será designada pela expressão appetitus animalis.

Divisões do apetite: appetitus naturalis, appetitus animalis. Convém que voltemos a esta distinção para precisar bem seu significado.

O “appetitus naturalis”, designa a inclinação que, de modo completamente universal, acompanha toda forma. Esta inclinação não é nada mais que a tendência sempre atual que relaciona uma forma a seu bem ou à suei perfeição. Como a forma que está em seu princípio, o “appetitus naturalis” é algo de nitidamente determinado: o corpo pesado inclina-se de maneira constante para baixo; isto está em sua natureza.

O “appetitus animalis” segue-se à forma apreendida no conhecimento: o animal vê sua presa e é levado – a atirar-se sobre ela. Este tipo de apetência distingue-se do precedente de muitas maneiras. Primeiro que tudo, não está continuamente em ato. Antes de perceber sua presa, o animal tem somente o poder de se lançar à sua busca. O apetite animal será, portanto, uma potência capaz de ser atuada. Por outro lado, esta potência deve ser distinguida das faculdades de conhecer: é o que se deve concluir da diversidade específica entre a atividade de conhecer, que é assimiladora e termina no sujeito, e a atividade de apetência que diz tendência, e tendência para um outro. Só faculdades distintas serão capazes de explicar atos tão diferentes. Notar-se-á, enfim, que o “apetite animal” não é, como o “apetite natural”, limitado a uma só forma de ser. É capaz de tomar para si todas as formas que as potências cognitivas forem capazes de receber. Ainda mais, se consideramos apenas o apetite próprio às faculdades, deveremos dizer, que, enquanto o “apetite natural” de uma dada faculdade visa apenas o bem próprio desta mesma faculdade, o “apetite animal”, que lhe corresponde, estende-se a todo bem do próprio sujeito. Pelo fato de comportar a atuação de uma potência, o “apetite animal” foi designado pela expressão, “apetite elícito”, que é de uso corrente.

Casos particulares das faculdades. – Se agora aplicarmos a descrição estabelecida para o caso destas naturezas de ser que são as faculdades, deveremos dizer que: na faculdade de conhecer há somente um “apetite natural” que a ordena para seu objeto. Assim, por exemplo, na vista, há um apetite natural que a ordena para a cor; mas para a faculdade apetitiva correspondente, pode-se falar em dois apetites distintos: de um “apetite natural”, sempre atual para o bem desta faculdade, e de um “apetite elícito” que, depois de um ato de conhecimento, determina-a para tal bem particular. Retomando nosso exemplo, diremos que o animal, antes de perceber sua presa, tem na potência visual um “apetite natural” para toda a ordem do visível, e em sua afetividade um outro “apetite natural” para tudo o que pode preencher seu desejo. Em sua consciência sobrevém a imagem da presa cobiçada e a potência afetiva “elicita” este ato de desejo que determina o processo da captura.

Apetite sensível e apetite intelectual: (Cf. Ia Pa. q. 80 a. 2). A distinção destas duas formas de apetite não apresenta dificuldade de princípio. Supõe somente bem estabelecida a especificidade respectiva das duas ordens do conhecimento sensível e do conhecimento intelectual. A partir disto, raciocina-se bem simplesmente. As potências apetitivas, sendo potências passivas, serão distinguidas conforme a diversidade dos princípios motores que as determinam. Ora, aqui esses princípios são os atos de duas potências genericamente diferentes, os sentidos de uma parte, e a inteligência de outra. Portanto, devem aqui existir duas espécies de potências apetitivas, as que se relacionam com o conhecimento sensível e as que correspondem ao conhecimento intelectual. É importante notar que o fato de ser apreendido pelo sentido ou pela inteligência não é, para o objeto desejado, uma circunstância puramente acidental. A razão ou o motivo de apetição é, nos dois casos, formalmente diferente: a afetividade sensível orientar-se-á tão somente a bens particulares, considerados como tais, enquanto o apetite intelectual, isto é, a vontade, visará sempre estes bens particulares sob a razão universal de bem. Embora versem sobre as mesmas coisas que estão fora da alma, as tendências voluntárias e as inclinações sensíveis não são especificamente as mesmas, o que supõe que se distingam perfeitamente as faculdades.

Apetite concupiscível e apetite irascível: (Cf. Ia Pa, q. 81, a. 2). Abordando os problemas particulares do apetite sensível, Tomás de Aquino é levado a estabelecer uma nova divisão de duas distintas faculdades desta ordem, divisão que terá sua importância moral. O princípio de discriminação invocado é o que conhecemos bem: onde existir razões de objeto especificamente diferentes, devem-se encontrar potências igualmente diferentes. Ora, nossa atividade sensível, à imitação da simples fôrça da natureza, pode ocupar-se de duas espécies de objetos ou de bens distintos: às vezes, de bens simplesmente desejáveis, “bonum simpliciter” (ou de males simplesmente a fugir); às vezes, de bens que me parecem difíceis a atingir “bonum arduum”. No primeiro caso, opera o apetite concupiscível; no segundo, deve intervir uma outra potência, o apetite irascível.

Que o bem desejável nos apareça às vezes como fácil e às vezes como difícil de ser conquistado, é evidente por si. Mas, poder-se-ia perguntar, uma tal circunstância é suficiente para criar uma diferença específica de objetos e, portanto, da faculdade? Em favor desta diferença específica Tomás de Aquino faz valer diversos argumentos. As paixões dos dois tipos parecem combater-se e enfraquecer-se mutuamente, o que insinua a exigência de uma distinção correspondente de potências.

Por outro lado, o que talvez seja mais decisivo, o apetite irascível apelaria para outras faculdades de conhecer, diferentes das faculdades do apetite concupiscível: para desejar, ou para amar basta ter sensações ou imagens; enquanto que para se encolerizar é preciso, além disso, ter tomado consciência das relações abstratas atingíveis só pelos sentidos internos superiores, cogitativa e memória; o irascível, por outro lado, engaja mais a razão. Embora distinguindo duas faculdades de apetição, convêm não deixar de restabelecer uma certa unidade entre elas: as paixões originadas de uma e de outra encadeiam-se e carreiam-se mutuamente. Mais profundamente, devemos dizer que o concupiscível tem algo de mais fundamental, e que assim o irascível enraíza-se, de certo modo, nele. [Gardeil]