obra

gr. ἔργον (ergon); v. erga

Pela excelência específica, cada coisa produz bem os seus produtos. Quando infectados pela perversão (κακία) desvirtuadora, esses produtos são mal [República, 353c] produzidos. O sentido do trabalho (ἔργον [ergon]) é idêntico ao que nós entendemos por função. É por qualquer coisa ter uma determinada função que ela pode estar ou não em funcionamento, que pode estar a funcionar bem ou mal, ou de todo em todo fora de funcionamento. Esta verificação de facto resulta da presença eficaz e efetiva da excelência (ἀρετή [arete]) ou da perversão (κακία [kakia]) num determinado ente, do efeito que ambas fazem surtir sobre o ente a que dizem respeito. Uma permite a qualquer coisa o bom desempenho das funções que lhe competem. A outra, pela sua ação, estraga, desfaz, desvirtua e perverte o trabalho (ἔργον) de cada ente [Por exemplo, se os ouvidos estão privados da sua arete produzem mal o seu trabalho (Rep., 353c). O mesmo se passa para todas as restantes coisas, tendo em vista o mesmo sentido (Rep., 353d).].

A «privação da excelência» [Rep., 353c9 e 353e2] não acaba com um determinado ente. Não faz que ele deixe, por exemplo, de estar disponível aí no mundo. O que acontece é que o seu trabalho específico é levado a cabo de uma forma deficiente [Rep., 353c9-10]. O trabalho (ἔργον) continua a produzir-se, mas não segundo um desempenho competente das linhas de produção ou de uma colaboração optimizada dos coeficientes de produção. Não as desempenhando bem, ou até, na pior das hipóteses, deteriorando-se com o seu próprio funcionamento [v. erga]. Pode acontecer que um produto danifique os próprios fatores de produção.

Quando não se perde de vista este εἶδος [eidos] do trabalho (ἔργον) específico de qualquer coisa, podemos dar expressão do que nele se manifesta estruturalmente: «o trabalho de cada coisa é o que produz algo somente, ou o que o produz o melhor possível». Podemos obter assim uma maior evidência sobre o sentido procurado da excelência (ἀρετή). «Há uma excelência para cada coisa à qual se prescreve uma determinada função.» [Rep., 353b] A excelência é a realização plena de uma determinada potencialidade que pode ficar para sempre inativa. A concretização dessa possibilidade leva a um completo e perfeito desdobramento e a uma manifestação do ser em que cada coisa se encontra desde sempre implicada e do qual depende para ser aquilo mesmo que é. Há, assim, por exemplo, uma possibilidade que os olhos realizam [Rep., 353b4], isto é, um determinado trabalho. Essa função pode ser realizada de forma excelente. Ver bem é a forma como os olhos desenvolvem a sua excelência (ἀρετή). Do mesmo modo os ouvidos [Eles detém um ἔργον τι (Rep., 353b8)] detêm uma determinada função e um modo de a executar excelentemente. Ouvir e ouvir bem são duas situações de acesso ao campo acústico completa e radicalmente diferentes. A excelência (ἀρετή) é, por conseguinte, a realização máxima e excelente da possibilidade que todas as coisas detêm para executar um determinado trabalho (ἔργον).

Mas pode também dar-se o caso de o trabalho (ἔργον) de cada coisa não ser produzido, o que sucede quando as coisas não [37] dispõem da sua «excelência peculiar» (οἰκεῖα ἀρετή [oikeia arete]). O trabalho (ἔργον) dos olhos ou dos ouvidos pode não ser bem produzido se, em vez da sua excelência (ἀρετή), for a perversão (κακία) a estar presente neles. Nessa altura, haveria uma má visão ou audição ou, no caso extremo, respectivamente, as mais completas cegueira [Rep., 353c3] e surdez. O mesmo se passando com todos os entes tomados em consideração [Rep., 353d1 e 353b12. Os instrumentos de corte podem não cortar, as casas podem não ser habitáveis, os cavalos podem, consoante o caso, não correr velozmente e os cães podem não ser bons para a caça ou para a guarda da casa, etc.]. Tudo pode realizar a sua possibilidade extrema. Tudo, no entanto, pode também ficar sem ela. [CaeiroArete:36-38]


A obra é a atividade correspondente à não-naturalidade [unnaturalness] da existência humana, que não está engastada no sempre-recorrente [ever-recurrent] ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. A obra proporciona um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras é abrigada cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas elas. A condição humana da obra é a mundanidade [worldliness]. [ArendtCH]


A língua grega não faz distinção entre “obras” e “feitos”, mas chama-os de erga quando são duráveis o bastante para subsistirem e grandiosos o bastante para serem lembrados. Foi somente quando os filósofos, ou melhor, os sofistas, começaram a fazer suas “distinções intermináveis” e a distinguir fazer de agir (poiein e prattein) que os substantivos poimata e pragmata passaram a ser usados mais largamente (Cf. Platão, Cármides, 163). Homero ainda não conhece a palavra pragmata, que em Platão (ta ton anthropon pragmata) é mais bem traduzida como “negócios humanos” e tem a conotação de inquietação e futilidade. Em Heródoto, pragmata pode ter a mesma conotação (cf., por exemplo, i. 155). [ArendtCH]