neoplatonismo renascentista

Cada época vê à sua maneira própria as épocas anteriores, sobretudo as mais antigas, e as acomoda conforme as suas ideias, o seu gosto, o seu temperamento e as suas necessidades. A Idade Média havia tomado de empréstimo à antiguidade uma dialética, uma doutrina de oue se servira para a explicação e a defesa das suas crenças; a Renascença concebeu sob um outro aspecto esses tempos que retornavam e que a enchiam de deslumbramento. Possuía mais artistas do que teólogos, ou então os seus artistas eram muito superiores aos seus teólogos; demorava-se na contemplação das formas antes de nelas buscar realidades de ordem intelectual, e é digno de nota o fato de ter sido um poeta como Petrarca um dos primeiros a saborear aqueles poucos diálogos platônicos que acabavam de ser descobertos e de achar-se personificado por um Leonardo da Vinci o tipo mais significativo dos homens de então. Isto não deve ser esquecido — e o é com demasiada frequência — quando se chega a esta era faustosa.

Devemos registrar ainda que foi da Itália que partiu o movimento, que foi ali que ele se expandiu com maior pujança e não é para causar admiração que, num clima ameno e em meio a uma civilização brilhante, o artista tenha levado a palma ao pensador e a imaginação à meditação. Isto já se patenteia no incrível sincretismo religioso em que se vê o Olimpo invadir o céu cristão, Júpiter vizinhar com Deus-Pai, Vénus com a Virgem e os heróis com os santos. A interpretação dos filósofos é menos fantasista; com toda facilidade poderá descarrilar e prestar-se a novas acrobacias do espírito.

Foi em 1438 que Aurispa e Traversari trouxeram de Constantinopla um manuscrito no qual estava contida a obra de Platão, e foi Gemisto Pléton quem se tornou o corifeu da filosofia platônica. Georgios Gemistos, cognominado Pléton (1375-1464), viera a Florença para tomar parte no concílio reunido com o fim de pôr termo à cisão que opunha a Igreja do Oriente à Igreja do Ocidente. Poi essa ocasião pregou a doutrina do mestre grego diante de um auditório seleto e com tal sucesso que Cosme de Médicis resolveu fundar uma “academia platônica”. Num livro sobre A dtferença entre Platão e Aristóteles, revivia Pléton o velho debate em torno dos dois filósofos, aplicando-se sobretudo a combater o último. Um outro tratado seu, o Tratado das leis, um pouco alexandrino derríais, foi condenado pelo patriarca de Constantinopla. É que, efetivamente, éste filósofo faz pensar mais em Plotino do que em Platão. Teve um zeloso discípulo na pessoa de João Argirópulos, professor de grego cm Florença, e adversários decididos em Teodoro de Gaza, que ensinava em Ferrara, e Jorge de Trebízonda, radicado em Veneza.

O Cardeal João Bessárion era inspirado pelos mesmos desígnios que Gemisto Pléton. Como este, trabalhou pela reunião das. duas igrejas, e como ele tratou de Aristóteles e Platão, mas procurando conciliá-los ao invés de opô-los. Entretanto o florentino» Marsílio Ficino grande humanista, se mostrava ardente propagador de um platonismo ainda fortemente inclinado para Plotino nem mesmo para Proclo. Servia-se do Fédon para defender, contra os averroístas, a imortalidade da alma; afastava-se ainda mais de Averróis e não temia aproximar-se de Aristóteles, vendo na alma a forma substancial do corpo. Mas também animava os astros e o próprio mundo, isto é, dotava-os de alma. Na vasta síntese que tentava reconstituir misturava Pitágoras, Zoroastro, o pseudo-Dionísio e outros, mostrando-se tomado por essa espécie de embriaguez oue empolgava então, por um excesso de entusiasmo e uma certa deficiência de método, os cérebros melhor alimentados.

Também os nomes de João Pico della Mirandola de seu sobrinho João Francisco e de seu discípulo João Reuchlin recomendam-se mais pelos prodígios da erudição do que pelas profundezas da especulação. Ainda platônicos, mas abandonando o tom polêmico, insistiam sobre o acordo possível dos dois filósofos gregos rivais e relacionavam com eles Santo Tomás, Avicena, Averróis e Duns Escoto. Isto se aplica principalmente ao primeiro, Pico. Reuchlin, mais antiescolástico, autor de um De arte cabalística publicado em 1517, sublinha as suas tendências particulares e o seu gosto pelo esoterismo. Era tio de Melanchton. Não se separou todavia de Roma, embora não a poupasse em suas críticas.

Tal é, em grosso, o neoplatonismo dos livros. Houve um outro que foi mais longe, talvez: o do comum dos espíritos ou de grandes espíritos menos especializados, e o dos costumes, aquele que estabelecia um compromisso fantasista e perigoso entre o paganismo e o cristianismo, aquele também que inspirava aos artistas esse idealismo donde brotaram obras inimitáveis. A célebre e pura ligação de um Miguel Ângelo com Vitória Colonna pode talvez servir como ilustração viva da doutrina. E é, na verdade, a paixão da vida que este período da Renascença revela ainda aqui. [Truc]