RELAÇÃO TOMISTA

O ser do que é relativo consiste no referir-se a outro, como o expressa Tomás de Aquino. Por sua razão própria, a relação não significa mais que referência a outro.

Os elementos que entram numa relação são os seguintes:

a) um sujeito que diz ordem a outra coisa, no qual tem a relação a sua existência.

b) um termo a que o sujeito diz ordem ou referência (referente);

c) um fundamento em que se baseia a referência.

Para que uma relação seja real é necessário que todos esses elementos sejam reais.

A relação, como vimos, pode ser considerada como:

a) acidente predicamental, ou ainda como

b) transcendente,

A relação predicamental expressa uma categoria distinta de ser, irredutível a todas as outras, a qual consiste na ordem, respeito ou referência entre dois termos, e não é nem substância, nem quantidade, nem qualidade, etc., mas apenas relação.

A relação transcendental é só relação no nome, porque, em sua essência, ela se identifica com os seres aos quais se atribui. Por exemplo, a ordem da potência de entender ou de querer e os actos da intelecção ou volição, são transcendentalmente relativos, por se identificarem na realidade do sujeito, como já vimos.

Examinemos alguns pontos importantes: para Tomás de Aquino a relação não é uma realidade objetiva em si; ela representa apenas o ad-aliquid, Em outras palavras: a relação é um ser assistência!. Sua sistenda consistiria apenas nesse ad-aliquid, nesse pros tir não tendo uma subsistência, um suppositum, uma entidade de per se (perseitas, perseidade).

Mas não se julgue que Tomás de Aquino, desse modo, ponha a perder a relação, pois a admite real, quando seus fundamentos são reais. Se a relação, de per se, não tem subsistência, subsiste, no entanto, em outros, os quais lhe dão realidade.

A relação predicamental seria uma relação ad-aliquid, para algo, enquanto a transcendental seria ab aliquo, de algo, vinda de algo. Como aqui já se invade um tema controverso, não poderíamos examiná-lo agora, o que caberá à problemática, já que os neotomistas, influenciados pela filosofia moderna» aceitam-na contra a opinião dos “velhos tomistas”.

O tema da relação é de uma complexidade extraordinária, pois não é ela imediatamente acessível à inteligência, como o é a substancia, nem aos sentidos, como o são os accidentes em geral.

A relação obriga outro modo de conhecer, e como muitas vezes se nos escapa, é natural que pairem aqui muitas controvérsias, cuja solução permite o surgimento de outras, no campo metafísico.

Na “Metafísica”, Aristóteles explicava: “A relação é, de todas as categorias, aquela que tem a menor realidade determinada ou substância; ela é até posterior à qualidade e à quantidade,.. É, portanto, absurdo, ou antes, impossível fazer do que não é uma substância, um elemento de coisas que são uma substância e de fazer dela uma coisa anterior à substância, pois todas as outras categorias, além da substância, são posteriores a esta”.

A relação deve sustentar-se numa base sólida para ser real, como o expôs Tomás de Aquino.

“Relatio autem semper fundatur super aliquid absolutum” (a relação contudo sempre se funda sobre algo absoluto). A substância é o substrato das relações reais “Substantia est fundamentum omnium entium” (a substância é o fundamento de todos os entes).

Mas admite Tomás de Aquino que outras categorias possam servir de fundamento para a relação. Assim a relação de semelhança funda-se na qualidade. Quanto à igualdade, que é a concordância na quantidade, é nesta que se funda a relação.

Duns Scotus estabelece que a relação fundamenta-se não só na substanda como também na qualidade e na quantidade. Exclui Tomás de Aquino as outras categorias. Dessa forma uma relação não pode ser fundamento real da relação. Também esse é o pensamento de Duns Scotus, quando diz “Impossibile est relationem relationis (realis)”. É um ponto controverso na filosofia. Aceitá-lo porém, como diz o aquinatense, seria um nunca acabar.

Quando a relação surge da mutação, apresenta ela aspectos que merecem destaque. Os termos mutação e processo, embora aparentemente sinônimos, exigem um esclarecimento. A mutatio (mutação) e transitus (processo) distinguem-se: a primeira é mais restricta, e a segunda mais ampla, muito embora sejam ambos os termos tomados sinonimicamente na filosofia. No entanto, podemos dizer que, no processo, há sempre processões activas e passivas.

Tomás de Aquino distinguiu duas espécies de processos: um interno e outro externo. “In omni mutatione et motu invenitur duplex processus: unus ab uno termino motus ad alium, sicut albedine in nigredinem (eiusdem subiecti), alius ab agente in patiens, sicut a faciente in factum”.

O primeiro, intrínseco, como a passagem do branco para o preto, no mesmo sujeito; o segundo, como a passagem (transitus) da ação realizada no paciente pelo agente.

Tomás de Aquino estabelece estas proposições solidárias: Não há relação real sem mutação: não há mutação sem nova relação real. A segunda é evidente, pois qualquer mutação implica previamente uma nova relação real. Quanto à primeira se presta a dúvidas, ponto, portanto, que provoca grandes controvérsias.

Entre o fundamento de uma relação, e esta, estabelece-se uma distinção, que, para Tomás de Aquino, é real, embora surjam entre os tomistas divergências de opinião. Duns Scotus aceita a evidência da distinção, visto que o mesmo fundamento pode servir a relações opostas, salvo na relação de criação, a qual é apenas formal. Entre os adversários desta concepção, temos João de Santo Tomás e Suarez, entre outros. É verdade que, em Tomás de Aquino, a presença de um pequeno número de passagens, que admitem a distinção real, leva a muitos tomistas a porem em dúvida a aceitação desta posição. Krempel, esquadrinhando a obra do aquinatense, reuniu copioso material para justificar tal tese.

Krempel simplifica da seguinte maneira: “mudar equivale a afastar-se de um terminus a quo; e devir o alcançar um terminus ad quem. Ora, já que em toda mudança absoluta, os dois termos são intrínsecos do sujeito, a aproximação de um comporta inevitavelmente o afastamento do outro. Ao contrário, o terminus ad quem da relação, encontrando-se fora, pode ser atingido, ao seu surgimento, sem que o sujeito abandone o terminus a quo: quer dizer, sem que ele mude — atendendo-se objetivamente se todas as condições são realizadas. O argumento principal da distinção real está em poder guardar-se um fundamento, podendo perder-se totalmente a relação real que dele nasceu.

Ademais, para Tomás de Aquino, uma entidade absoluta e uma relação criada nunca se confundem sobre o plano da existência.

Para tornar mais claro o pensamento do aquinatense, Krempel oferece o seguinte exemplo: se numa peça, a luz de uma vela caí sobre uma criança que entra, não somente a vela está acesa, mas ainda ela a ilumina; determinatur ad istum, como dizia Tomás de Aquino a propósito da relação. Antes da entrada da criança, a vela queimava sem dúvida, mas não iluminava, nêm tampouco depois da saída da criança. Ao iluminá-la, a vela nada ganha nem nada perde após. Nenhuma mudança se produziu nela, salvo naturalmente a de consumir-se. E, contudo, não só logicamente, mas ainda objetivamente, queimar é uma coisa, iluminar uma criança é totalmente outra, e o que decorre com toda evidência do facto que um pode existir sem o outro: não a iluminação sem a luz, mas o inverso; não a relação sem o fundamento, mas o fundamento sem a relação.

Este exemplo, desprezando-se o que possui naturalmente de grosseiro, serve para dar uma noção clara da distinção real entre a relação e o seu fundamento. Ademais, se Tomás de Aquino prova que, de um mesmo fundamento, só pode surgir uma única relação da mesma espécie, tal não impede, como ele mesmo o considerava, que, do mesmo fundamento, surjam diversas relações de espécies diferentes.

As relações podem ser reais ou de razão. As reais, também chamadas de relativum secundum dici, não se fundam nos termos reais. Esta segunda relação é a que vários tomistas chamam de relação transcendental. Quanto ao genuino sentido dessas expressões não se encontra ainda na escolástica matéria pacífica, surgindo sempre controvérsias.

Dividia Tomás de Aquino as relações em relações estáticas, as que têm por fundamento uma quantidade (perfeição), e relações dinâmicas, as que têm por fundamento o processo. Todas as relações dinâmicas realizam o conceito de ordem (ordo ad), supondo, consequentemente, um principium e, portanto, um prius e um posterius. O conceito de ordo é duplicemente considerado: 1) o de gravidade, como a hierarquia, ou 2) de relação entre diversos graus, e não apenas no sentido moderno de relação entre um todo e suas partes, e destas entre si.

Também se usava no sentido de fim, ordo ad, ou de convenientia, ou de cooperatio. [MFS]