"Uma cidade, é evidente, não constitui simples ajuntamento tendente a evitar erros mútuos e intercambiar serviços; estas são condições necessárias, mas que não identificam uma cidade. Uma cidade é uma reunião de casas e de famílias, para bem viverem, isto é, para levarem vida perfeita e independente." [Político, III, 5, 1280 b 29.] A primeira parte desse trecho refere-se a Platão, que, ao definir a cidade mediante a divisão do trabalho e o intercâmbio, cometeu o erro de indicar somente as condições materiais e não a verdadeira natureza, ou seja, a causa final da cidade. A sociedade serve não somente para viver, mas para viver bem, que é a condição da vida moral. A ciência política consistirá, antes de tudo, no exame das condições pelas quais esse fim pode ser alcançado; mas o exame consiste menos em construções teóricas do que no uso de observações e experiências que Aristóteles multiplica e amplia com investigações históricas profundas acerca das constituições das cidades. Os sofistas haviam feito repertórios de leis das cidades. [Ética a Nicômaco, X. 9.] Aristóteles prossegue no trabalho e escreve, por si mesmo, ou faz escrever a história de constituições diferentes. Mas essa história não se faz senão para preparar um modo de avaliação. O método é o mesmo que em biologia: os fatos da experiência agrupam-se em feixes, de acordo a determinadas direções.
O fim que ele atribui à cidade é também, em certa medida, o resultado de experiência e formação políticas. Aristóteles vê na independência econômica de uma potência agrária, como a Lacedemônia, a condição de sua vitalidade moral. A independência de uma cidade funda-se na exclusão de relações econômicas com o estrangeiro. Desde que um país procure, como faz a Atenas do século V, recursos em seu comércio com o estrangeiro, depende dos países que produzem trigo e dos que compram seus produtos; de onde se origina, com o incremento do comércio, a necessidade de empréstimos e de bancos. [Kinkel, Die socialökonomischen Grundlagen der Staatslehre von Aristoteles, 1911, p. 92.] Toda essa civilização nova, que conduz a guerras, é condenada por Aristóteles. Ele desejaria o retorno à economia natural. A unidade econômica é a família, a qual tem tudo o que é preciso para produzir o necessário ao consumo de seus membros, e não troca senão o supérfluo desse consumo. Não existe trabalhador livre e assalariado; a organização da escravidão, com o poder absoluto do senhor (despótes) sobre o escravo é a condição dessa organização econômica. O escravo é o instrumento vivo que não tem outra vontade senão a do senhor e que não participa da virtude moral; tornar-se-á inútil "quando as lançadeiras se movam por si" (I, 2). Essa divisão da humanidade em senhores e escravos não é arbitrária nem violenta: a natureza, subordinada ao finalismo, cria, nos climas quentes da Ásia, homens de espírito engenhoso e sutil, mas sem energia, que nasceram para escravos. Só o clima temperado da Grécia pode produzir homens ao mesmo tempo inteligentes e enérgicos, livres por natureza e não por convenção. Nessa teoria que quadra tão bem com o finalismo de Aristóteles, sente-se o eco da luta secular entre a Grécia e os bárbaros e, talvez, um intento de justificação da gigantesca empresa de domínio universal da Grécia, empreendida então por Alexandre. [Político, VII, 6, 1327 b 21-23.]
A família é algo mais do que uma organização de finalidade econômica; ela permite a orientação, pelo chefe da família, das almas imperfeitas, que são as mulheres e as crianças: almas imperfeitas, mas não almas de escravos. Não se trata, portanto, de poder absoluto; o marido dirige a mulher, como um magistrado a seus administrados: e o pai a seus filhos, como um rei a seus súditos (I, 5).
A família implica, assim, todas as condições necessárias para que a cidade se componha unicamente de livres e iguais. É preciso, com efeito, eliminar do número de cidadãos todos os que exercem funções de produção, lavradores ou artesãos, pois são ofícios sem nobreza e suprimem o "lazer necessário para a prática da virtude e a ocupação política". Para esse mister, deve empregar-se gente de outra raça que não cuide senão de seu trabalho, e não de revoluções. A cidade propriamente dita tem, antes de tudo, funções militares e judiciárias que pertencem aos mesmos homens de idades diferentes. É preciso acrescentar as funções sacerdotais (VII, 7).
A diversidade de constituições (IV, 4 e 5) procede das mil maneiras pelas quais essas funções, sempre as mesmas, podem ser repartidas entre os cidadãos. Há democracia, quando os homens livres e sem recursos, que compõem a maioria, estão à testa dos negócios; caracterizam-na a liberdade e a igualdade. É preciso, ainda, distinguir a democracia em que prevalece a lei e aquela da multidão com seus votos mutáveis. A oligarquia é a presença no poder de ricos e de nobres, e tende para a monarquia, à medida que a riqueza se torna mais concentrada. A diversidade de governos tem, portanto, uma das condições essenciais no equilíbrio de fortunas; grandes diferenças de fortuna engendram necessariamente a oligarquia. O fim último da cidade é assegurar a felicidade e a virtude aos cidadãos, mediante o domínio das leis. Tal domínio é favorecido por certas condições econômicas e pelo desenvolvimento das classes médias: "Quando a classe dos trabalhadores e dos que possuem fortuna média são donos da cidade, tem-se o reino da lei; não podendo viver senão trabalhando, e não havendo tempo para o lazer, eles obedecem à lei e não participam senão das assembleias necessárias." Existem, ao contrário, muitos cidadãos ociosos? A democracia transforma-se em demagogia e "os votos substituem a lei". O método é claro: trata-se não de fundar uma cidade, mas de encontrar, nas condições efetiva e historicamente realizáveis, os meios infinitamente diversos e cambiantes, segundo as circunstâncias, de assegurar o bem social. Para encontrar a melhor constituição em um caso determinado, é preciso levar em conta, também, as condições geográficas: "A acrópole é oligárquica e monárquica; a planície é democrática" (VII, 10). Condições numerosas e algumas sujeitas a mudanças impedem que a constituição possa manter-se estável. O desejo de igualar ou superar os outros, de enriquecer, o acréscimo de fortunas são os motivos principais que provocam as revoluções (V, 2).
Dentre essas condições, há grande número que procede da natureza, e que o homem não pode dominar; mas há muitas que promanam da reflexão e da vontade, que o homem domina por via da educação, que deve preparar na criança a virtude cívica. A educação, que modela os bons cidadãos, evita o desenvolvimento de uma função em detrimento de outras e sabe manter a hierarquia dessas funções em seu próprio valor: perigosa, por exemplo, é a educação belicista de Esparta, que faz da guerra o fim da cidade, ao passo que a guerra e o trabalho não são feitos senão para a paz e o lazer. Perigoso é, também, o abuso da ginástica que, entre os tebanos, transforma todo cidadão em atleta, e o abuso da música, que cria o virtuose. É preciso, em realidade, desenvolver o corpo para a alma; a parte inferior da alma, as paixões, para a parte superior: a vontade. E, finalmente, a parte superior, com vistas à razão contemplativa (VII, 12).
O desenvolvimento da contemplação intelectual é, portanto, o fim único em relação ao qual todo o resto não é senão a condição e a consequência. Na alma humana, na sociedade como no universo, todas as coisas propendem para o pensamento. A filosofia é, talvez, menos o estudo do pensamento em si, que ultrapassa o homem, do que o estudo dessa tendência, com suas condições prodigiosamente numerosas e variadas que nos transmite a experiência. O universo mental de Aristóteles é um quadro dos diversos graus de aproximação dessas condições. (Metafísica, E, I, 1025 b 18-28) No mais alto grau, as ciências teóricas: filosofia primeira, física e matemáticas estudam as coisas que são como são e cuja perfeição consiste em sua própria necessidade. Num plano mais baixo, vêm as ciências práticas e poéticas, isto é, aquelas cujos objetos podem existir de maneira diferente do que são e dependem de condições naturais, proporcionadas por uma feliz oportunidade, e do esforço humano. As primeiras, moral e política, conduzem as ações; as segundas, técnicas de todo gênero, compreendem produtos fabricados pelo homem; mas essa classificação não impede, de modo algum, a perfeita continuidade que faz com que a ação humana, como o teorema matemático, seja o resultado de um silogismo e que a retórica e a poesia não tenham ação sobre as paixões, senão graças ao pensamento racional que ainda as inspira. [Bréhier]