MECANISMO VITAL

Esta eliminação do sentido e dos fins da vida se faz pela redução de toda realidade a supostos fatos e séries de fatos e pela interpretação mecânica e puramente fisiológica do todo vital. A explicação do psíquico pelo fisiológico e a redução da psicologia à fisiologia é característica marcante do pavlovismo.

É certo que o sentido da dignidade da vida em geral e da vida humana em particular decaiu na medida em que prosperaram o determinismo e o mecanicismo com sua noção do ser vivo, concebido à imagem e semelhança da máquina e quando a fisiologia foi vista como a ciência do funcionamento das engrenagens, das cargas e descargas, das polias e das válvulas do aparelho orgânico. Tal noção da vida, onde a preocupação com o funcionamento das partes ocupa o lugar conferido outrora às finalidades do funcionamento do todo, está intimamente ligada à degradação da ideia de homem: a afirmação das finalidades últimas da vida não era compatível com a transformação do homem num objeto qualquer da natureza, manipulável pela técnica científica como qualquer outro. Para que o homem se tornasse objeto das manipulações científicas, era preciso concebê-lo previamente como um acidente qualquer da natureza, pura quantidade corporal, mecanismo complexo, vazio de toda interioridade. Pavlov, como representante do "naturalismo" é apenas o resultado dessa concepção. Pavlov nasceu no século XIX, quando o homem se tornou realmente o "homo oeconomicus" e foi claramente concebido como instrumento da produção; era pois inevitável que uma ciência como a reflexologia lançasse as bases de uma nova mecânica do comportamento. Dizemos mecânica do comportamento. Há discípulos de Pavlov que pretendem não ser o pavlovismo uma interpretação mecânica do fenômeno vital. Repelem como inadequadas as expressões mecânico e mecanismo; negam por exemplo que o sistema nervoso seja um mecanismo; negam a localização mecânica da sensação dolorosa; mas negam apenas verbalmente, porque na realidade quando explicam tais fenômenos não conseguem ultrapassar o mecanicismo; veja-se por exemplo o número da revista La Raison, dedicado ao pavlovismo pelos seus discípulos franceses; na pág. 4 nega-se que o sistema nervoso seja mecanismo; mas em seguida o sistema nervoso é explicado de maneira visivelmente mecânica. Nega-se que o reflexo seja um mecanismo; mas, por toda parte e particularmente nas págs. 29, 34, 39, 132, 136, 206 e 215, o reflexo aparece claramente como função mecânica; negam que a memória seja mecânica; mas dão da memória explicações acintosamente mecânicas, cujo modelo é o que se encontra à pág. 107 da mesma publicação. São exemplos que se poderiam multiplicar indefinidamente percorrendo a obra de Pavlov (como, por ex.: Lectures on Conditioned Reflexes, de I. P. Pavlov, trad. inglesa, International Publishers, N. York, 2 vols.) e os inúmeros livros de seus discípulos. O fato é que o pavlovismo confunde a sensação com a excitação, reduz todo psíquico ao físico, usa a linguagem do "receptor especializado", da "estimulação direta", do "canal condutor", etc.

Não é privilégio do pavlovismo pensar que procura inutilmente uma linguagem científica que não incorra na mecanização do vital; segundo Bergson, toda explicação científica é necessariamente mecânica e o pavlovismo não difere de outras teorias quando confunde o movimento com a mobilidade, quando se vê incapaz de apreender o tempo sob outra forma que não seja a de um espaço de tempo; quando em suma considera o organismo e a vida, o tempo e o espaço como puras quantidades. Segundo Meyerson, a ciência não pode explicar nada, porque não capta o heterogêneo, não sabe o que a realidade é, desde que só consegue explicar o mesmo pelo mesmo, o idêntico pelo idêntico, não explicando cousa alguma.

Não se julgue porém que o pavlovismo interprete mecanicamente a vida por deficiência de linguagem, por não encontrar palavras que traduzam o inefável do fluxo vital. Ao contrário, o pavlovismo não vê nada de inefável no fluxo vital e tem uma linguagem perfeitamente adequada ao que quer dizer; não é por falta de palavras, mas por natureza, que o pavlovismo interpreta mecanicamente a vida em linguagem científica; o pavlovismo, por sua natureza, não pode dar da vida outra explicação que não seja a mecânica; sua linguagem não poderia ser outra senão a que é; por isso, há uma contradição nos discípulos de Pavlov que negam a mecanicidade do reflexo ou da evolução e depois explicam mecanicamente a evolução e o reflexo; esta contradição porém não se encontra no próprio Pavlov, que é declaradamente mecanicista. O pavlovismo se sente tão bem no reino das palavras, que pensa que as palavras são o reino da cultura, e se dissermos, por exemplo, que as palavras em si não são nada, que apenas exprimem e revestem outras realidades metafísicas e culturais mais fundas que elas, os pavlovistas não desconfiarão de nada. Uma filosofia cultural das palavras, ou a ideia de um espírito objetivo, qual foi concebido por Nikolai Hartmann, apareceria aos pavlovistas como algo completamente estranho, anti-científico e inteiramente fora de propósito. Porque há no pavlovismo certa inocência retardatária, que lembra o entusiasmo do século XVIII, quando descobriu a imagem do homme-machine e se admirou de que nunca antes tivesse ocorrido a ninguém uma descoberta tão elementar. [Barbuy]