VIDE privado e público
Contudo, termina aqui a possibilidade de descrever, em termos de uma nítida oposição, a profunda diferença entre as compreensões moderna e antiga de política. No mundo moderno, os domínios social e político diferem muito menos entre si. O fato de que a política é apenas uma função da sociedade – de que a ação, o discurso e o pensamento são, fundamentalmente, superestruturas assentadas no interesse social – não foi descoberto por Karl Marx; pelo contrário, foi uma das premissas axiomáticas que Marx recebeu acriticamente dos economistas políticos da era moderna. Essa funcionalização torna impossível perceber qualquer abismo relevante entre as duas esferas; e não se trata de uma questão de teoria ou de ideologia, pois, com a ascendência da sociedade, isto é, do “lar” (oikia) ou das atividades econômicas ao domínio público, a administração doméstica e todas as questões antes pertinentes à esfera privada da família transformaram-se em preocupação “coletiva” [v. economia social]. No mundo moderno, os dois domínios constantemente recobrem um ao outro, como ondas no perene fluir do processo da vida.
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Deixar o lar, originalmente para abraçar alguma empresa aventureira e gloriosa, e mais tarde simplesmente para dedicar a vida aos assuntos da cidade, exigia coragem, pois era só no lar que os indivíduos se preocupavam basicamente em defender a vida e a sobrevivência próprias. Quem ingressasse no domínio político deveria, em primeiro lugar, estar disposto a arriscar a própria vida; o excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade e sinal inconfundível de servilismo. [v. escravo] A coragem, portanto, tornou-se a virtude política por excelência, e só aqueles que a possuíam podiam ser admitidos em uma associação que era política em conteúdo e propósito e que por isso mesmo transcendia o mero estar junto imposto igualmente a todos – escravos, bárbaros e gregos – pelas premências da vida. [v. escravo] A “vida boa” como Aristóteles nomeava a vida do cidadão, era, portanto, não apenas melhor, mas livre de cuidados e mais nobre que a vida ordinária, mas possuía qualidade inteiramente diferente. Era “boa” exatamente porque, tendo dominado as necessidades do mero viver, tendo se libertado do trabalho e da obra e superado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas vivas, deixava de ser limitada ao processo biológico da vida.
Na raiz da consciência política grega encontramos uma clareza e uma precisão sem-par na definição dessa diferença. Nenhuma atividade que servisse à mera finalidade de garantir o sustento do indivíduo, de somente alimentar o processo vital, era autorizada a adentrar o domínio político – e isso sob o grave risco de abandonarem-se o comércio e a manufatura ao engenho de escravos e de estrangeiros, de sorte que Atenas se transformou realmente na “pensionópolis” com um “proletariado de consumidores” que Max Weber tão vividamente descreveu. [Max Weber, “Agrarverhältnisse im Altertum”, Gesammelte Aufsätze zur Sozialund Wirtschaftsgeschichte (1924), p. 147] O verdadeiro caráter dessa pólis é ainda bastante evidente nas filosofias políticas de Platão e Aristóteles, mesmo que a linha divisória entre a família e a pólis seja ocasionalmente toldada, especialmente em Platão, que, provavelmente seguindo Sócrates, passou a colher os seus exemplos e ilustrações da pólis das experiências cotidianas na vida privada, mas também em Aristóteles, quando este, seguindo Platão, presumiu hipoteticamente que pelo menos a origem histórica da pólis deveria estar ligada às necessidades da vida, e que somente o seu conteúdo ou finalidade inerente (telos) transcende a vida na “boa vida”
Esses aspectos dos ensinamentos da escola socrática, que logo se tornariam axiomáticos, no nível da banalidade, eram, na época, os mais novos e mais revolucionários; resultavam não da experiência efetiva na vida política, mas do desejo de libertar-se do seu ônus, um desejo que os filósofos, em sua própria compreensão, só podiam justificar mediante a demonstração de que até mesmo esse modo de vida, o mais livre de todos, estava ainda ligado à necessidade e sujeito a ela. Não obstante, o pano de fundo da experiência política efetiva, pelo menos em Platão e Aristóteles, continuava tão forte que jamais foi posta em dúvida a distinção entre as esferas do lar e da vida política. Sem a vitória, no lar, sobre as necessidades da vida, nem a vida nem a “vida boa” é possível, mas a política jamais existe em função da vida. No que tange aos membros da pólis, a vida no lar existe em função da “vida boa” na pólis. [ArendtCH, 5]