INFORMATIZAÇÃO

Em nossas peregrinações de ser, não ser e vir a ser, sentimos, a cada passo, uma diferença entre realidade e realização. Não se trata de fato entre fatos, nem de coisa entre coisas, seja dada, feita ou pronta, seja deste ou de outro mundo. Trata-se da estranheza constitutiva e do desafio próprio da existência histórica dos homens. A realidade é sub-reptícia. Sua vigência nunca é direta. Seu impacto é sempre oblíquo. A realidade se dá, como realização, na medida e enquanto se retrai, como subtração. Ora, dar-se enquanto se retrai, apresentar-se na ausência, manter-se vigente na falta, é o vigor próprio da realidade. Questionar os desafios da informática exige pensar o vigor da realidade realizando-se na INFORMATIZAÇÃO. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Século vespertino é um século de acumulação e esvaziamento, onde afazeres, relacionamentos, conquistas, recursos, instituições, grupos, indivíduos, tudo enfim é protegido é favorecido, mas às custas da originalidade de suas realizações. Impera por toda parte um vazio saturado pelas dependências de ter e não ter. Em compensação, mobilizam-se as forças da grandeza humana e crescem o empenho de descer e as tentativas de passar. Num século vespertino o homem é transitivo. Só fala do passado dirigindo-se para o futuro, em sintonia com o que está por vir. A provocação para pensar, que nos traz hoje a avalanche da informática, reside na ambivalência vespertina, concentra-se na ambiguidade transitiva da INFORMATIZAÇÃO. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Numa famosa poesia dos Ditirambos de Dioniso, de 1888, Nietzsche opõe às composições da informática as posições do pensamento, nas seguintes palavras: Die Wüste wachst, “o deserto cresce”, weh dem, der Wüsten birgt, “ai de quem guarda dentro de si desertos!” A essência do deserto está na desolação, o vigor de um deserto se avalia pela capacidade de assolar. Desolar é pior do que aniquilar, assolar é mais radical do que destruir. O aniquilamento acaba apenas com o que já existe, enquanto a desolação, conservando o existente, acaba com as possibilidades de criar, finda com as condições de libertar-se. A destruição elimina o que é, desfaz o que foi, apaga os traços do que será, enquanto, mantendo os seres, o assolamento retira as virtualidades da criação. Com a informática cresce o deserto de assolamento e desolação. Mas não cresce apenas a desolação e o assolamento. Pois é a própria INFORMATIZAÇÃO que nos impõe pensar os desafios da informática e exige de nós assumir a radicalidade de suas transformações. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Cada vez mais circulamos em circuitos integrados de] larga escala. O cilício que hoje nos ameaça, é de silício: O desafio, que hoje nos atinge, provém de uma autocracia, informacional. A informática se torna um rolo compres-, sor. Em seu tropel a sociedade rola de alto a baixo. Tudo se processa. Por toda parte opera um micro. Nenhuma força da tradição parece poder resistir à atropelada da computação. As novas gerações de computadores prometem interface para tudo. Aumenta sem cessar o número dos periféricos. Pois o grande periférico visado é o homem que espera o inesperado. Pois neste caso, nada poderá fugir à INFORMATIZAÇÃO. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Mas o que é isso, informatizar? Para o Pensamento, informatizar não é o verbo que designa os fatos e feitos da informática. Não nos remete apenas para o funcionamento de ferramentas e aparelhos, não se refere a dispositivos de processamento ou a instalações de computação, com todas as mudanças que acarretam. A INFORMATIZAÇÃO não é o resultado da expansão mundial de uma parte, de sorte que a totalidade resultante fosse o todo de uma parcialidade geral. A INFORMATIZAÇÃO não se reduz a transferir determinada integração de ciência e técnica, de conhecimento e ação para todas as áreas em que se distribuem os homens histórica e socialmente organizados. Informatizar é o processo metafísico de Fim da História do poder ocidental. Na INFORMATIZAÇÃO e por ela, o poder de organização da História do Ocidente se torna planetário. A dicotomia de teoria e prática, de mundo paciente de objetos e mundo agente dos cérebros vai sendo superada numa composição absorvente. Por ela se complementam, numa equivalência de constituição recíproca, o sujeito e o objeto, o espírito e a matéria, a informação e o conhecimento, o mundo dos cérebros e o mundo das coisas. A luta entre materialismo e idealismo se torna, então, uma brincadeira de criança. O pessimismo e o otimismo se transformam em categorias inofensivas para classificar irmãos de uma mesma família. Sendo um verbo de essência, informatizar nos precipita na avalanche de um poder histórico de realização. Por isso não indica primordialmente o processamento automático de conjunturas, mas um processo autocrático de estruturação, que tudo aplana, tudo controla, tudo contrai numa composição onipotente. A terra e o mundo, a história e a natureza, o ser e o nada se reduzem a componentes de compatibilidade universal. A INFORMATIZAÇÃO é uma voracidade estrutural em que todas as coisas, todas as causas e todos os valores são acolhidos, são defendidos, são promovidos, mas ao mesmo tempo perdem sua liberdade e fenecem em criatividade. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Assim, informatizar é um supermodo de organização. Tanto desencadeia as forças produtivas, como contém os modos de produção no poder e não poder de uma ordem planetária de dominação. Os modos cibernéticos de organização recolhem em si as condições de toda a vigência social e de toda a causalidade histórica. Ora, é no fluxo de uma socialização total, é na avalanche de uma historização que as ordens simbólicas se compõem com as ordens pragmáticas nas superestruturas da automação. Se pensarmos, portanto, em toda a envergadura o desafio da INFORMATIZAÇÃO, não há cegueira que nos impeça ver nela a realização da essência planetarizante da técnica moderna. No poder dos chips de macro- e micro-bytes, Hegel celebra com Marx o sistema do absoluto, quer em sua versão idealista, quer em sua versão materialista. É a composição final de todas as posições e de todas as oposições em sua dinâmica de locupletação. É a síntese escatológica de todas as teses e de todas as antíteses, em sua história de absolutização. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

A INFORMATIZAÇÃO não é, pois, simples efeito da informática e sua expansão. A informática é que nasceu da INFORMATIZAÇÃO. O que está em jogo é um processo totalitário de realização. Neste nível abre-se todo um outro horizonte para se pensar o vigor histórico da INFORMATIZAÇÃO em sua essência de poder, tanto para a libertação como para a dominação. É o horizonte da realidade em movimento de realização. Aqui no palco da história, o real se faz espetáculo e demonstra o potencial de suas virtualidades de ser e parecer, de não ser e vir a ser. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Mas, neste caso, como informatizar chega a realizar? Decerto, realizar e informatizar não são a mesma palavra. Mas se não são a mesma palavra, em todas as comunidades linguísticas em uso, pertencem à mesma língua de origem e dizem a mesma coisa, a saber: a transformação do real numa forma controlada de poder. Informatizar é um neologismo derivado de informática para designar toda uma ordem de real, realização e realidade, instaurada pelo processamento micro-eletrônico das informações. Com os recursos denotativos e conotativos da adjetivação, substantivação e verbalização, se colocou em ação nos dois eixos da modernidade, no paradigmático e no sintagmático, um princípio de ordem e uma força de organização, a que nada do mesmo nível poderá resistir: a INFORMATIZAÇÃO total da sociedade. Para se avaliar a profundidade das transformações históricas que aqui se operam, deve-se levar em conta duas coisas essenciais na dinâmica de realização da informática. Em primeiro lugar, a forma da informática não remete apenas para o âmbito artesanal das artes e ofícios. Remete também para o domínio de qualquer criação, seja na arte, na ciência, na indústria, na organização ou na convivência. Em segundo lugar, a forma da informática indica uma estrutura plural composta de circuitos e programação. De acordo com esta pluralidade se realiza uma composição de forma capaz de processar não apenas dados, mas conhecimentos, sistemas de relações. Tudo é, então, reduzido a formas e somente a formas. Nesta redução universal a INFORMATIZAÇÃO não apenas realiza, como, sobretudo, desafia em todos os níveis a criatividade e o inesperado de qualquer sociedade que se informatiza. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

A cegueira radical não impede ver. Ao contrário, possibilita ver qualquer coisa, por já ter reduzido tudo a formas padronizadas de visão. A cegueira radical só é cega para a essência das coisas. Por isso, a objeção não vê que nos domínios da informática já não é possível separar, nem mesmo distinguir, meio e fim, instrumentação e realização, forma e substância. O homem não vive primeiro e só depois existe. O homem não existe primeiro e só depois faz esforço, observa, presta atenção, memoriza, combina, inventa, decide, sente, relaciona-se. É fazendo esforço que ele existe. É observando, prestando atenção, memorizando, é combinando, inventando, é decidindo, é sentindo que ele existe. Cego, portanto, e cego de cegueira radical, é quem, vendo apenas formas processadas, não pode perceber a mesma realização superando as dicotomias pré-cibernéticas nas próprias diferenças cibernéticas. Trata-se do tipo de cegueira que o efeito de distorção da INFORMATIZAÇÃO espalha por toda parte nas sociedades informatizadas. De tanto processamento automático já não se consegue ver os processos essenciais. Tudo perde substância e profundidade, tudo se dimensiona em formas com funções politônicas, sejam binárias, sejam terciárias. A funcionalidade se torna um destino histórico de toda a humanidade. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

O Imperialismo Romano se construiu na força de uma palavra de ordem: divide et impera. Com a mesma tática, o conhecimento moderno foi transferindo a legitimidade do saber de aceitação da realidade, vigente na filosofia grega e na teologia medieval, para a ciência e técnica de transformação do real operante desde o início da idade moderna. O positivismo comtiano, ao rejeitar a filosofia em nome da ciência, nada mais fez do que retomar para a ciência os ideais de que se valera até então a filosofia para justificar-se. A retórica da ciência não correspondia, pois, a seu efetivo exercício. Os conceitos com que a ciência se interpretava a si mesma não condiziam com a prática científica. O que a ciência vinha fazendo, era de fato outra coisa do que proclamava a retórica de sua interpretação de si mesma, toda louvada na linguagem filosófica da tradição pré-moderna. Assim, todo um arsenal de conceitos, como teoria, verdade, conhecimento, abstração, experiência, axioma, empiria, método etc, era sistematicamente utilizado, como se o ideal de saber moderno, concretizado na ciência de transformação do real, fosse igual ou realizasse o mesmo ideal de saber, encarnado pela filosofia de aceitação da realidade. Nem se percebia que as categorias, os discursos e percursos praticados pelo processamento moderno sofrem uma distorção de uso, sentido e operação, assumindo novas funções sintáticas e carregando-se de outros desempenhos semânticos, por efeito da operacionalidade científica. Assim, por exemplo, para a ciência, o uso, o sentido e a operação de um termo como teoria, já não são os mesmos que lhe atribuíam Platão, Aristóteles ou Rogério Bacon. Nos vértices dos novos conhecimentos, a prática científica não se conforma nem se coaduna, como pensavam A. Comte e seguidores, com as ideias e os princípios do empirismo filosófico de um Locke e seguidores. Com a INFORMATIZAÇÃO, o que aparece hoje cada vez mais claro, é que o conhecimento científico e as práticas técnicas nada mais têm de imediato e espontaneamente real. Ao contrário, estão todos imbuídos de modelos, teorias e processamentos. Acham-se indissoluvelmente ligados a práticas operatórias e só admitem, como função de verdade, valores operativos. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Estas questões só poderão ser postas e desenvolvidas na e pela realização da informática, de seus efeitos e fatos que se recolhem e concentram na INFORMATIZAÇÃO. Pois somente a INFORMATIZAÇÃO tem condições de determinar o papel da experiência e o lugar da lógica na produção do conhecimento técnico-científico. Torna-se indispensável analisar o funcionamento autônomo da ciência-técnica dentro dos vórtices da INFORMATIZAÇÃO. Ora, de vez que a ciencia-técnica opera sempre racional e materialmente, compreende-se que o problema central remete para a dinâmica cibernética da ciência-técnica. Em sua ação, a ciencia-técnica se mantém em contínuo progresso. Pois é um processo que se auto-organiza, se realimenta e se enriquece a si mesmo. Ora, um tal movimento de auto-regulagem não se pode explicar nem pela psicologia dos sujeitos implicados, nem pelo nicho social ou pelo contexto histórico dos cientistas e técnicos. Somente um processamento estritamente cibernético, cujo núcleo seja de natureza híbrida, tanto lógica como microeletrônica, será capaz de dar conta de toda essa auto-organização. Dois mecanismos ou procedimentos coordenados, a conjectura e a dedução, vêm implementar a dinâmica integrativa deste processamento da ciência-técnica. Instala-se, então, a seguinte funcionalidade: de um dado conjunto de informações deduzem-se conjecturas operatórias que se integram automaticamente em sistemas de alternativas em transformação. A seguir, a automação se encarrega de eliminar as alternativas que não forem eficazes, o que remete à dedução de novas conjecturas, e o jogo recomeça. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Toda essa integração recorrente de ciência e técnica sugeriu a Karl Popper a ideia do terceiro mundo. Também na INFORMATIZAÇÃO existem três mundos: um mundo material de coisas com que lidam os processamentos e em que vivem e agem os homens. É o primeiro mundo. A seguir, um mundo subjetivo de cérebros processadores de informação. É o segundo mundo. E, por fim, um terceiro mundo, distinto dos dois outros e feito de entidades culturais produzidas pelos homens, mas que, depois de produzidas, se tornaram autônomas e seguem seus próprios caminhos. No terceiro mundo encontramos os sistemas simbólicos e todas as obras construídas pela linguagem, sejam de natureza mítica, religiosa, artística, filosófica ou qualquer outra. É neste terceiro mundo que têm lugar os efeitos e artefatos cibernéticos e microeletrônicos da INFORMATIZAÇÃO. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

O mundo da INFORMATIZAÇÃO é uma nebulosa de sistemas em evolução. Dotada de autonomia independente das pessoas que a produzem, só se liga aos homens de maneira extrínseca. Como sistema autônomo, possui seus mecanismos próprios de crescimento e impõe uma lógica politônica aos outros sistemas de que se vale para crescer e desenvolver-se. Estes outros sistemas são, de um lado, os cérebros humanos e não as pessoas humanas e, de outro, as coisas materiais. Cérebros humanos são máquinas de criar informações e coisas materiais são energias de ação. O princípio-chave para se compreender o vir a ser e a evolução da informática é o princípio da auto-organização. Como os sistemas biológicos, os sistemas microeletrônicos se organizam de tal maneira que se vão complexificando por seus próprios dispositivos- Mas tal autonomia não exclui e sim inclui até a necessidade de ir buscar energias e insumos nos outros sistemas. Graças a interações e inter-relacionamentos entre os sistemas, a INFORMATIZAÇÃO aumenta sua complexidade, cresce e evolui. Assim, também no nível do terceiro mundo operam muitas das propriedades e características dos sistemas biológicos. Por isso é que a cibernética e a microeletrônica só podem evoluir e desenvolver-se em conexão com os cérebros humanos, de um lado, e com os sistemas materiais, de outro. O mundo da INFORMATIZAÇÃO progride por trocas com os dois outros. E são estas trocas que explicam por que todo desempenho cibernético tem dois polos, um polo lógico, que remete para as interações com o mundo subjetivo dos cérebros, e um polo micro-eletrônico que remete para o mundo material das coisas e dos objetos técnicos. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Chegamos, pois, a uma leitura da ciência-técnica que nada tem a ver com táticas de persuasão, mas se constrói toda sobre o próprio funcionamento e desempenho da INFORMATIZAÇÃO. Esta leitura nos mostra não somente o que significa transformar o real em objeto e o objeto em dispositivo operacional, mas também como é que se dá e efetua um nível destas transformações. Toda a realidade se reduz a três mundos: o mundo subjetivo dos sistemas cerebrais, o mundo objetivo dos sistemas materiais e o mundo simbólico dos sistemas cibernéticos e informatizados. Com esta leitura se pretende excluir qualquer visão antropológica e filosófica da ciência-técnica. Pois, uma análise na perspectiva do homem, como pessoa e sócio, já não falaria da ciência-técnica em si mesma e, sim, do que os homens, como pessoas e sócios, fazem a propósito da ciência-técnica, ou por meio dela, ou com vistas à ciência-técnica. Neste caso falar-se-ia das interações entre os sistemas científico-técnicos e os seres humanos ou das repercussões nos seres humanos dos sistemas científico-técnicos, mas não da ciência e da técnica em si mesmas. O que se diria, então, referir-se-ia não à própria ciência-técnica, mas as representações e imagens mais ou menos antropomórficas que os homens fazem da ciência-técnica. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Ora, do ponto de vista dos desafios e impactos da ciência e da tecnologia na dinâmica da cultura, os problemas da interação e das trocas são os decisivos e, por isso mesmo, se torna indispensável e urgente sua colocação e seu questionamento. E são justamente as questões do poder e da dominação com que mais nos acenam os impactos da ciência-técnica nas interações com os sistemas sociais e humanos. A caracterização de alguns destes impactos servirá, a título de conclusão, para deixar entrever a profundidade e o sentido das transformações em causa na INFORMATIZAÇÃO. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Um impacto interessa à planetarização da política e do poder organizacional. Hoje tudo é política. A cada passo deparamos com política. De sentinela do direito, o poder foi-se totalizando e se fez providência universal. Tudo é poder, o poder é tudo. Todo e qualquer problema é questão política e de política. Todas as áreas de atividade estão sendo absorvidas pelo sorvedouro do poder. A política foi se alargando, alargando e terminou por alagar tudo. Por força da técnica e da ciência, todos os níveis da vida e convivência se viram progressivamente absorvidos. Na avalanche da ciência e da técnica, vivemos hoje imperceptivelmente o desafio totalitário da política total. Mas, por outro lado, para tudo se tornar uma questão de poder, a política tem de descobrir flancos e ser questionada em suas pretensões totalitárias. Se tudo for um problema político, a política está em crise. Qual é a crise da política total? — Para alçar-se a uma extensão planetária, a política teve de esvaziar-se ao máximo. E neste vazio a ciência e a tecnologia vão substituindo a antiga arte política pelos poderes da INFORMATIZAÇÃO. Por isso, pensar os desafios e impactos da consciência histórica atual inclui renunciar, de certo modo, às imposições de poder e dominação da ciência e tecnologia escondidas e mascaradas pela extensão universal da política total. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

O segundo impacto se refere ao estiolamento da Linguagem por perda progressiva de criatividade. Para a INFORMATIZAÇÃO da ciência e da técnica, a Linguagem se reduz a um instrumento de processar informações. As possibilidades significativas de uma língua se determinam e se medem, então, pelo jogo de seus usos. Posse suficiente esta determinação, nunca poderia haver no interior de uma comunidade linguística crises de incompreensão. Ora, a vitalidade de uma comunidade linguística está na razão direta de sua capacidade de sofrer crises de incompreensão. Quando a envergadura do uso já não pode articular o jogo das experiências criadoras, determinada língua entra em crise em suas próprias possibilidades de significação, buscando vencer o perigo e ultrapassar a ameaça de tornar-se insensata. É que uma língua só comunica se e na medida em que sua competência tiver sentido, isto é, enquanto puder articular as experiências inovadoras partilhadas pela comunidade. Responder à pergunta, se um discurso é ou não significativo, equivale a responder à pergunta, qual dimensão da experiência comunitária nele se consolida e se exprime? Só depois de satisfeita esta exigência é que se poderá tratar da correta aplicação e da integração dos princípios lógicos, sejam de ordem monotônica ou polifônica. Porque só um discurso significativo é criador, por isso a questão do sentido prevalece sobre a questão da eficiência e validade de sistemas microeletrônicos e circuitos integrados. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

No mundo da INFORMATIZAÇÃO estamos vivendo cada vez mais intensamente as ameaças de insensatez dos discursos. O pêndulo da linguagem oscila de extremo a extremo sem chegar a uma posição de equilíbrio. Estas oscilações extremas se refletem em nosso discurso. Se formos bastante informatizados para nos entregar de corpo e alma a inversões extremadas, já não nos sobrará outra alternativa, senão a de renunciar à criatividade de toda língua natural e de todo discurso originário. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Os informatizados de hoje já dão sinal de aprisionamento num mundo pobre de linguagem criativa. Um processo de graves consequências políticas. E que com a avalanche da INFORMATIZAÇÃO se vive progressivamente num mundo em que a linguagem natural vai perdendo sempre mais autoridade, num mundo que, em sua tendência histórica, já não necessita das línguas naturais. Pois tudo que o homem conhece, sente, pensa, sabe ou faz, só se torna realmente significativo, só adquire sentido essencial, se houver possibilidade de conversa e diálogo, na medida em que dele se puder falar a partir de sua linguagem. Não há verdade no singular, fora de toda e qualquer envergadura de discurso. Toda verdade é plural. A verdade só se dá por existirmos na linguagem do plural, numa correnteza que nos arrasta para uma convivência de diálogo. Enquanto vivermos, pensarmos e agirmos na Terra, só faz sentido o que pudermos falar uns com os outros, o que puder receber um significado na e da linguagem. O esvaziamento das línguas naturais é uma conjuntura que a INFORMATIZAÇÃO progressiva, instalada pela ciência e tecnologia em nosso mundo, traz consigo irremediavelmente. Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Um terceiro impacto provém da atitude negativa diante do trabalho. O mundo informatizado da ciência e da técnica não gosta de trabalhar. O trabalho não tem valor por si. Só vale como meio e instrumento. E se trata de meio precário, de um instrumento primitivo. O trabalho tem sido um mal necessário, que o progresso da ciência e da técnica vai remediar de todos os modos. A automação e robotização se tornam a panaceia do trabalho. Vão rompendo definitivamente com os laços imemoriais com que desde sempre o trabalho entrelaçara homem e terra, realidade e realização. Com a automação promete-se desmascarar o trabalho como uma necessidade histórica da existência. Uma promessa tão antiga como a história. Uma. vida livre do jugo de trabalhar não é um desejo tecnológico. E uma condição paradisíaca. Em todos os tempos, uma vida sem trabalho tem pertencido aos privilégios de poucos que sempre dominaram e tripudiaram sobre muitos. A INFORMATIZAÇÃO acena com a possibilidade de realizar este sonho que todas as gerações do passado só puderam sonhar e nunca chegaram a realizar. E não só parecem, são realmente uma esperança, mas uma esperança de Pandora. Reduzindo o homem exclusivamente à produção, a INFORMATIZAÇÃO unidimensionaliza a sociedade, como se indivíduos e grupos só existissem para produzir e consumir. É uma história de bruxa má: a satisfação do desejo transforma a promessa de bênção em maldição e faz da esperança desespero. A libertação do trabalho é agenciada pelas possibilidades automatizadas da robotização. É que o mundo da INFORMATIZAÇÃO total só sabe mesmo produzir. Não conhece outras atividades pelas quais valesse a pena lutar e libertar-se das peias do consumo. Estandardizada por necessidade tecnológica, a sociedade informatizada não dispõe de instâncias que pudessem mobilizar outras potências da condição humana. Por uma questão de princípio, todas as funções, todos os dispositivos estão a serviço e comprometidos com uma produtividade sem limites. Tudo é produção e consumo. O mundo gira num círculo vicioso: a meta é produzir mais, para consumir mais, para lucrar mais, para produzir mais. Somente sonhadores, amantes, poetas, pensadores e religiosos, é que ainda pretendem realizar-se no elemento Linguagem e confiam num instante de criação: rara hora et pauca mora! Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO

Mas tudo isso, toda esta situação histórica de INFORMATIZAÇÃO da técnica e da ciência, será mesmo viável? Será mesmo possível viver num mundo informatizado em que o trabalho, traço de união com a terra, fosse totalmente substituído pela automação? Será mesmo possível morar num mundo sem as vivências criadoras da linguagem, onde as línguas naturais fossem exorcizadas pelas monossemias de línguas e metalínguas cibernéticas? Será mesmo possível suportar um mundo sem a terra da criação, onde uma “mesa já não se firma com os pés no chão, mas se apoia na cabeça, e em seu cérebro de madeira engendra caprichos muito mais prodigiosos do que se começasse espontaneamente a dançar”? Aprendendo a pensar II: Os desafios da INFORMATIZAÇÃO [Carneiro Leão]