ser-em-si

An-sich-sein

O modo de lidar, talhado segundo o instrumento, e único lugar em que ele se pode mostrar genuinamente em seu ser como, por exemplo, o martelar com o martelo, não apreende tematicamente esse ente como uma coisa que apenas ocorre, da mesma maneira que o uso não sabe da estrutura do instrumento como tal. O martelar não somente tido sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. Ao se lidar com o instrumento no uso, a ocupação se subordina ao ser para (Um-zu) constitutivo do respectivo instrumento; quanto menos se fixar na coisa martelo, mais se sabe usá-lo, mais originário se torna o relacionamento com ele e mais desvelado é o modo em que se dá ao encontro naquilo que ele é, ou seja, como instrumento. O próprio martelar é que descobre o “manuseio” especifico do martelo. Denominamos de manualidade o modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo. O instrumento está disponível para o manuseio, em sentido amplo, unicamente porque todo instrumento possui esse “SER-EM-SI”, não sendo o que simplesmente ocorre. Por maior que seja o grau em que se visualize precisamente a “configuração” das coisas na qual elas aparecem desta ou daquela maneira, nunca se conseguirá descobrir o que é o manual. A visualização puramente “teórica” das coisas carece de uma compreensão da manualidade. O modo de lidar com os instrumentos no uso e no manuseio não é porém cego. Possui seu modo próprio de ver que dirige o manuseio e lhe confere uma segurança especifica. O modo de lidar com instrumentos subordina-se a multiplicidade de referências do “ser para” (Um-zu). A visão desse subordinar-se é a circunvisão . STMSCC: §15

Que o mundo não “consista” de manuais, isso se mostra, dentre outras coisas, porque, junto com o evidenciar-se de mundo nos modos interpretados da ocupação, ocorre simultaneamente uma desmundanização do manual, de tal maneira que ele aparece como ser simplesmente dado. Para que se possa encontrar o instrumento manual em seu “SER-EM-SI” nas ocupações cotidianas do “mundo circundante”, as referências e conjuntos referenciais em que a circunvisão “se empenha” não devem ser tematizados nem para ela e nem, principalmente, para uma apreensão “temática”, desprovida de circunvisão. O não-anunciar-se do mundo é a condição de possibilidade para que o manual não saia da sua não-surpresa. E é isso que constitui a estrutura fenomenal do SER-EM-SI desse ente. STMSCC: §16

As expressões privativas como não-surpresa, não importuno, não impertinente indicam um caráter fenomenal positivo do ser que está imediatamente à mão. Esse “não” indica o caráter de manter-se em si do manual. É o que temos em mente com a expressão SER-EM-SI e que, de maneira característica, atribuímos primeiramente ao ser simplesmente dado, passível de constatação temática. Uma orientação exclusiva ou primordial pelo que é simplesmente dado não pode esclarecer ontologicamente o “em-si”. Caso se recorra com razão fenomenal e ênfase ôntica ao em-si do ser, então faz-se necessária uma interpretação. Esse recurso ôntico, no entanto, não preenche a exigência pretensamente dada de um enunciado ontológico. A análise empreendida até agora mostra claramente que só se pode apreender ontologicamente o SER-EM-SI dos entes intramundanos com base no fenômeno do mundo. STMSCC: §16

Da mesma forma que a evidência ôntica do SER-EM-SI dos entes intramundanos desencaminha para a convicção de uma evidência ontológica do sentido deste ser, saltando por cima do fenômeno do mundo, assim também a evidência ôntica de que a presença (Dasein) é sempre minha desvia a problemática ontológica que lhe pertence. Inicialmente o quem da presença (Dasein) não é apenas um problema ontológico, mantendo-se também onticamente encoberto. STMSCC: §25

A “descrição” do mundo circundante mais próximo, por exemplo, do mundo do artesão, mostrou que, com o instrumento em ação, também “vêm ao encontro” os outros, aos quais a “obra” se destina. No modo de ser desse manual, ou seja, em sua conjuntura, subsiste uma referência essencial a possíveis portadores para os quais a obra está “talhada sob medida”. Do mesmo modo, junto com o material empregado, também vem ao encontro o seu produtor ou “fornecedor”, enquanto aquele que “serve” bem ou mal. O campo, por exemplo, onde passeamos “lá fora” mostra-se como o (173) campo que pertence a alguém, que é por ele mantido em ordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, foi presenteado por… e assim por diante. Em seu SER-EM-SI, o barco ancorado na praia refere-se a um conhecido que nele viaja ou então um “barco desconhecido” mostra outros. Os outros que assim “vêm ao encontro”, no conjunto instrumental à mão no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão à mão para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu. Na análise feita até aqui, a periferia daquilo que vem ao encontro dentro do mundo restringiu-se, de início, ao instrumento manual e à natureza simplesmente dada e, assim, aos entes destituídos do caráter da presença (Dasein). Esta restrição não apenas era necessária para simplificar a explicação, mas, sobretudo, porque o modo de ser da presença (Dasein) dos outros que vêm ao encontro dentro do mundo diferencia-se da manualidade e do ser simplesmente dado. O mundo da presença (Dasein) libera, portanto, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas mas que, de acordo com seu modo de ser de presença (Dasein), são e estão “no” mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São como a própria presença (Dasein) liberadora – são também co-presenças. Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente intramundano, dever-se-ia então dizer: “mundo” é também presença (Dasein). STMSCC: §26

A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a própria presença (Dasein). Será que essa caracterização não provém de uma distinção e isolamento do “eu”, de maneira que se devesse buscar uma passagem do sujeito isolado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso atentar em que sentido se fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser simplesmente dado “em conjunto” dentro de um mundo. O “com” é uma determinação da presença (Dasein). O “também” significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. “com” e “também” devem ser (174) entendidos existencialmente e não categorialmente. À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença (Dasein) é mundo compartilhado . O ser-em é ser-com os outros. O SER-EM-SI intramundano desses outros é co-presença. STMSCC: §26

Sob o título problema da realidade, entrelaçam-se diferentes questões: 1. se é (real) o ente supostamente “transcendente à consciência” (Bewusstsein); 2. se essa realidade do “mundo externo” pode ser provada de modo suficiente; 3. e, caso esse ente seja real, até que ponto pode ser conhecido em seu SER-EM-SI?; 4. qual o sentido desse ente, realidade? Com referência à questão ontológico-fundamental, a discussão que vai se seguir do problema da realidade tratará de três pontos: a) realidade como problema do ser e da possibilidade de comprovação do “mundo externo”; b) realidade como problema ontológico; c) realidade e cura. STMSCC: §43