Mitsein
§26. A co-presença dos outros e o SER-COM cotidiano STMSCC: §26
A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a própria presença (Dasein). Será que essa caracterização não provém de uma distinção e isolamento do “eu”, de maneira que se devesse buscar uma passagem do sujeito isolado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso atentar em que sentido se fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser simplesmente dado “em conjunto” dentro de um mundo. O “com” é uma determinação da presença (Dasein). O “também” significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. “com” e “também” devem ser (174) entendidos existencialmente e não categorialmente. À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença (Dasein) é mundo compartilhado . O ser-em é SER-COM os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é co-presença. STMSCC: §26
A expressão “presença (Dasein)” mostra claramente que, “numa primeira aproximação”, esse ente não se acha remetido a outros e que apenas posteriormente é que também pode ser “co”-presente com outros. Não se deve, contudo, desconsiderar que usamos o termo co-presença para designar o ser em direção qual os outros sã liberados dentro do mundo. Dentro do mundo, essa co-presença dos outros só se abre para uma presença (Dasein) e assim também para os co-presentes, visto que a presença (Dasein) e em si mesma, essencialmente, SER-COM. O enunciado fenomenológico: presença (Dasein) é, essencialmente, SER-COM possui um sentido ontológico-existencial. Ela não quer constatar onticamente (176) que eu, de fato, não estou sozinho como algo simplesmente dado ou que ocorrem outros de minha espécie. Se a frase: o ser-no-mundo da presença (Dasein) se constitui essencialmente pelo SER-COM quisesse dizer isto, então o SER-COM não seria uma determinação existencial que conviria à presença (Dasein) segundo o seu modo próprio de ser. Seria uma propriedade que, devido à ocorrência dos outros, introduzir-se-ia a cada vez. O SER-COM determina existencialmente a presença (Dasein), mesmo quando um outro não é, de fato, dado ou percebido. Mesmo o estar-só da presença (Dasein) é SER-COM no mundo. Somente num SER-COM e para um SER-COM e que o outro pode faltar. O estar-só é um modo deficiente de SER-COM, e sua possibilidade é a prova disso. Por outro lado, não se elimina o estar só porque “junto” a mim ocorre um outro exemplar de homem ou dez outros. A presença (Dasein) pode estar só mesmo quando esse e ainda outros tantos são simplesmente dados. O SER-COM e a facticidade da co-presença não se fundam, pois, numa ocorrência simultânea de vários “sujeitos”. O estar só “entre” muitos também não diz, com referência ao ser dos muitos, que eles sejam algo simplesmente dado. Nesse estar “entre eles”, eles são co-presentes; sua co-presença vem ao encontro no modo da indiferença e da estranheza. A falta e “ausência” são modos da co-presença, apenas possíveis porque a presença (Dasein), enquanto SER-COM, permite o encontro de muitos em seu mundo. Ser-com é sempre uma determinação da própria presença (Dasein); ser co-presente caracteriza a presença (Dasein) de outros na medida em que, pelo mundo da presença (Dasein), libera-se a possibilidade para um SER-COM. A própria presença (Dasein) só é possuindo a estrutura essencial do SER-COM, enquanto co-presença que vem ao encontro de outros. STMSCC: §26
Se o SER-COM constitui existencialmente o ser-no-mundo, ele deve poder ser interpretado pelo fenômeno da cura, da mesma forma que o modo de lidar da circunvisão com o manual intramundano que, previamente, concebemos como ocupação. Pois esse fenômeno determina o ser da presença (Dasein) em geral (cf. cap. VI desta seção). O caráter ontológico da ocupação não é próprio do SER-COM, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vem ao encontro dentro do mundo como ocupação. O ente, com o qual a presença (Dasein) se relaciona enquanto SER-COM, também não possui o modo de ser do instrumento à mão, pois ele mesmo é presença (Dasein). Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa.(177) STMSCC: §26
“Ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo doente é também preocupação. Numa simetria com a ocupação, entendemos essa expressão como termo de um existencial. A “preocupação”, no sentido de instituição social fática, por exemplo, funda-se na constituição de ser da presença (Dasein) enquanto SER-COM. Sua urgência provém de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença (Dasein) manter-se nos modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e indiferença, caracterizam a convivência cotidiana e mediana de um com outro. Também esses modos de ser apresentam o caráter de não surpresa e evidência que convém tanto a co-presença intramundana cotidiana dos outros como a manualidade do instrumento de que se ocupa no dia-a-dia. Esses modos indiferentes da convivência recíproca facilmente desviam a interpretação ontológica para um entendimento imediato desse ser como ser simplesmente dado de muitos sujeitos. Embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros. STMSCC: §26
De acordo com a análise aqui desenvolvida, o ser com os outros pertence ao ser da presença (Dasein) que, sendo, põe em jogo seu próprio ser. Enquanto SER-COM, a presença (Dasein) “é”, essencialmente, em virtude dos outros. Isso deve ser entendido, em sua essência, como um enunciado existencial. Mesmo quando cada presença (Dasein) fática não se volta para os outros quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de SER-COM. No SER-COM, enquanto o existencial de ser em virtude dos outros, os outros já estão abertos em sua presença (Dasein). Essa abertura dos outros, previamente constituída pelo SER-COM, também perfaz a significância, isto é, a mundanidade que se consolida como tal no existencial de ser-em-virtude-de. Por isso, a mundanidade do mundo assim constituída, em que a presença (Dasein) já sempre é e está de modo essencial, deixa que o manual do mundo circundante venha ao encontro junto com a co-presença dos outros, na própria ocupação guiada pela circunvisão. Na estrutura da mundanidade do mundo, os outros não são, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar ao lado de outras coisas. Eles se mostram em seu ser-no-mundo, empenhado nas ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mundo, está à mão. STMSCC: §26
A abertura da co-presença dos outros, pertencente ao SER-COM, significa: na compreensão do ser da presença (Dasein) já subsiste uma compreensão dos outros, porque seu ser é SER-COM. Como todo compreender, esse compreender não é um conhecer nascido de uma tomada de conhecimento. É um modo de ser originariamente existencial que só então torna possível conhecer e tomada de conhecimento. Este conhecer-se está fundado no SER-COM que compreende originariamente. Ele se move, de início, segundo o modo de ser mais imediato do ser-no-mundo que é com, no conhecer compreensivo do que a presença (Dasein) encontra e do que ela se ocupa na circunvisão do mundo circundante. A partir da ocupação e do que nela se compreende é que se pode entender a ocupação da preocupação. O outro se descobre, assim, antes de tudo, na preocupação das ocupações. STMSCC: §26
Mas assim como o revelar-se e o fechar-se fundam-se nos modos de ser respectivos da convivência, de tal maneira que ele nada mais é do que isso mesmo, também a abertura explicitada na preocupação nasce meramente do SER-COM primordial. Essa abertura temática e não teórica ou psicológica do outro evidencia-se facilmente para a problemática teórica do compreender da “vida psíquica do outro” enquanto o fenômeno que é primeiro visualizado. O que, fenomenalmente, apresenta “numa primeira aproximação” um modo de convivência compreensiva torna-se, ao mesmo tempo, aquilo que, assim considerado, possibilita e constitui, “em princípio” e originariamente, o ser para os outros. Esse fenômeno que, de maneira não muito feliz, denomina-se ” empatia” deve, por assim dizer, construir ontologicamente uma ponte entre o próprio sujeito isolado e o outro sujeito, de início, inteiramente fechado. STMSCC: §26
Do ponto de vista ontológico, o ser para os outros é diferente do ser para coisas simplesmente dadas. O “outro” ente possui, ele mesmo, o modo de ser da presença (Dasein). No SER-COM e para os outros, subsiste, portanto, uma relação ontológica entre presenças. Essa relação, pode-se dizer, já é cada vez constitutiva da própria presença (Dasein), a qual possui por si mesma uma compreensão de ser e, assim, relaciona-se com a presença (Dasein). A relação ontológica com os outros torna-se, pois, projeção do próprio ser para si mesmo “num outro”. O outro e um duplo de si mesmo. STMSCC: §26
O ser para o outro não é apenas uma remissão ontológica irredutível e autônoma. Ele já está sendo, enquanto SER-COM, o ser da presença (Dasein). Na verdade, não se pode discutir que, com base no SER-COM, o conhecer-se reciprocamente concreto depende, muitas vezes, do alcance em que a própria presença (Dasein) sempre se compreende a si mesma; no entanto, isso diz apenas o alcance em que o SER-COM os outros essencial se tornou transparente e não se deturpou, o que só é possível porque a presença (Dasein), enquanto SER-COM, já é sempre com os outros. Não é a “empatia” que constitui o SER-COM. Ao contrário, empatia só é possível com base no SER-COM, não podendo ser evitada em seus modos deficientes e predominantes do SER-COM, já que estes a motivam. STMSCC: §26
Que “empatia” não constitua um fenômeno existencial originário e nem um conhecer, isso não significa, porém, que ela não coloque problemas a seu respeito. Sua hermenêutica específica terá de mostrar como as diversas possibilidades ontológicas da própria presença (Dasein) desviam e impedem a convivência e seu respectivo conhecimento, de tal modo que um seu “compreender” autêntico se vê sufocado, e a presença (Dasein) passa a recorrer a seus sucedâneos; ademais, terá também de mostrar a possibilidade que supõe a condição existencial positiva de uma compreensão adequada do outro. A análise mostrou: o SER-COM é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. A co-presença se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Porque a presença (Dasein) é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários “sujeitos”. O deparar-se com o contingente numérico de “sujeitos” só é possível quando os outros que vêm ao encontro na co-presença são tratados meramente como “números”. Tal contingente só se descobre por meio de um determinado SER-COM e para os outros. Esse SER-COM “desconsiderado” “conta” os outros sem “levá-los em conta” seriamente, sem querer “ter algo a ver” com eles. STMSCC: §26
A própria presença (Dasein), bem como a co-presença dos outros, vem ao encontro, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a partir do mundo compartilhado nas ocupações do mundo circundante. Empenhando-se no mundo das ocupações, ou seja, também no SER-COM os outros, a presença (Dasein) também é o que ela própria (182) não é. Quem é, pois, que assume o ser enquanto convivência cotidiana? STMSCC: §26
Do ponto de vista ontológico, o resultado relevante da análise precedente do SER-COM está em se perceber que o “caráter de sujeito” da própria presença (Dasein) dos outros determina-se existencialmente, ou seja, a partir de determinados modos de ser. Nas ocupações com o mundo circundante, os outros nos vêm ao encontro naquilo que são. Eles são o que empreendem. STMSCC: §27
Neste afastamento constitutivo do SER-COM reside, porém: a presença (Dasein), enquanto convivência cotidiana, está sob a tutela dos outros. Não é ela mesma que é, os outros lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros dispõe sobre as possibilidades cotidianas de ser da presença (Dasein). Mas os outros não estão determinados. Ao contrário, qualquer outro pode representá-los. O decisivo é apenas o domínio dos outros que, sem surpresa, é assumido sem que a presença (Dasein), enquanto SER-COM, disso se de conta. O impessoal pertence aos outros e consolida seu poder. “Os outros”, assim chamados para encobrir que se pertence essencialmente a eles, são aqueles que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, são “co-pre-sentes” na convivência cotidiana. O quem não é este ou aquele, nem o si mesmo do impessoal, nem alguns e muito menos a soma de todos. O “quem” e o neutro, o impessoal. (183) STMSCC: §27
O impessoal possui ele mesmo modos próprios de ser. A tendência do SER-COM que denominamos de afastamento funda-se em que a convivência, o ser e estar um com o outro como tal, promove a medianidade. Este é um caráter existencial do impessoal. Em seu ser, o impessoal coloca essencialmente em jogo a medianidade. Por isso, ele se atém faticamente à medianidade do que é conveniente, do que se admite como valor ou sem valor, do que concede ou nega sucesso. Essa medianidade, designando previamente o que se pode e deve ousar, vigia e controla toda e qualquer exceção que venha a impor-se. Toda primazia é silenciosamente esmagada. Tudo que é originário se vê, da noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta torna-se banal. Todo segredo perde sua força. O cuidado da medianidade desvela também uma tendência essencial da presença (Dasein), que chamaremos de nivelamento de todas as possibilidades de ser. STMSCC: §27
Nestas características ontológicas da convivência cotidiana, ou seja, no afastamento, medianidade, nivelamento, público, desencargo de ser e contraposição, reside a “consistência” mais imediata da presença (Dasein). Esta consistência não diz respeito à constância de algo simplesmente dado que se preserva, mas ao modo de ser da presença (Dasein) enquanto SER-COM. Nestes modos de ser, o si-mesmo da presença (Dasein), o si-mesmo do outro ainda não se encontraram e, assim, tampouco se perderam. O impessoal é e está no modo da consistência do não si-mesmo e da impropriedade. Este modo de ser não significa uma diminuição ou degradação da facticidade da presença (Dasein), da mesma forma que o impessoal, enquanto ninguém, não é um nada. Ao contrario, neste modo de ser, a presença (Dasein) é um ens realissimum, caso se entenda “realidade” como um ser dotado do caráter de presença (Dasein). STMSCC: §27
Com a interpretação do SER-COM e do ser-si-mesmo no impessoal, respondeu-se a pergunta quem da convivência cotidiana. Estas reflexões propiciam, ao mesmo tempo, uma compreensão concreta da constituição fundamental da presença (Dasein). O ser-no-mundo tornou-se visível em sua cotidianidade e em sua medianidade. STMSCC: §27
O que ainda se deve mostrar no ser-no-mundo, além das remissões essenciais de ser-junto-ao-mundo (ocupação), de SER-COM (preocupação) e de ser-si-mesmo (quem)? Com efeito, pode-se sempre ainda ampliar a análise no sentido de se distinguir a presença (Dasein) dos entes não dotados do caráter de presença (Dasein), mediante uma caracterização comparativa dos desdobramentos da ocupação e sua circunvisão, da preocupação e sua consideração, e através de uma explicação mais apurada do ser de todos os entes intramundanos possíveis. Sem dúvida, nesta direção há muitas tarefas a serem cumpridas. O que se explicitou até aqui ainda carece de complementos no tocante a uma elaboração completa do a priori existencial de uma antropologia filosófica. Mas esse não é o propósito da presente investigação. O seu escopo é uma ontologia fundamental. Se é assim que questionamos tematicamente o ser-em, sem dúvida não poderemos pretender esgotar a originariedade deste fenômeno, derivando-o de outros, isto é, mediante uma análise inadequada, no sentido de uma solução. Todavia, a impossibilidade de se derivar o que é originário não exclui uma variedade multiforme de características ontológicas constitutivas. Quando elas se mostram, são igualmente originárias do ponto de vista existencial. O fenômeno da igualdade originária dos momentos constitutivos foi, muitas vezes, desconsiderado na ontologia, em consequência de uma tendência metodológica incontrolável para comprovar a proveniência de tudo e de todos a partir de um “fundamento primordial” único e simples. STMSCC: §28
O ter medo por também pode estender-se a outros e, nesse caso, falamos de ter medo em lugar do outro. Esse ter medo em lugar de… não retira do outro o medo. Isso esta excluído porque o outro, em lugar de quem se tem medo, não precisa necessariamente ter medo. Na maior parte das vezes, temos medo em lugar do outro justamente quanto ele não tem medo e audaciosamente enfrenta o que o ameaça. Ter medo em lugar de… é um modo de disposição junto com os outros mas não necessariamente um ter medo junto com ou mesmo ter medo convivendo com. Pode-se ter medo em lugar de, sem ter medo por si. Visto mais precisamente, porém, ter medo em lugar de é um sentir-se amedrontar-se. “O que dá medo”, nesse caso, é o SER-COM o outro, que poderia vir a ser suprimido. O amedrontador não visa diretamente àquele que tem medo junto com. O ter medo em lugar de… de certa forma sabe que não é atingido, embora, na verdade, seja atingido pela co-presença, da qual se tem medo. O ter medo em lugar de não é, pois, um medo atenuado. Não se trata aqui de graus de “sentimento” e, sim, de modos existenciais. Com isso, porém, o ter medo em lugar de não perde sua autenticidade específica quando “propriamente” não tem medo. STMSCC: §30
Em seu caráter existencial de projeto, compreender constitui o que chamamos de visão da presença (Dasein). A visão que, junto com a abertura do pre (das Da), se dá existencialmente e, de modo igualmente originário, a presença (Dasein), nos modos básicos de seu ser já caracterizados, a saber, a circunvisão da ocupação, a consideração da preocupação, a visão de ser em virtude da qual a presença (Dasein) é sempre como ela é. Chamamos de transparência (Durchsichtigkeit) a visão que se refere primeira e totalmente à existência. Escolhemos esse termo para designar o “conhecimento de si mesmo”, bem entendendo-se que não se trata de um exame perceptivo e nem tampouco da inspeção de si mesmo como um ponto, mas de uma captação compreensiva de toda a abertura do ser-no-mundo através dos momentos essenciais de sua constituição. O ente que existe tem a visão de “si” somente à medida que ele se faz, de modo igualmente originário, transparente em seu ser junto ao mundo, em seu SER-COM os outros, enquanto momentos constitutivos de sua existência. STMSCC: §31
A fala é a articulação “significativa” da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que pertence o SER-COM, e que já sempre se mantém num determinado modo de convivência ocupacional. Essa convivência está sempre falando, tanto ao dizer sim quanto ao dizer não, tanto provocando quanto avisando, tanto pronunciando, recuperando ou intercedendo, e ainda “emitindo enunciados” ou fazendo “discursos”. Falar é falar sobre… Aquilo sobre que se fala não possui necessariamente, nem mesmo na maior parte das vezes, o caráter de tema de um enunciado que estabelece determinações. Também uma ordem é exercício de uma fala sobre; o desejo também possui aquilo sobre que deseja. O interceder não se acha desprovido de algo sobre que. A fala possui necessariamente esta estrutura, já que constitui também a abertura do ser-no-mundo e sua própria estrutura é pré-moldada por essa constituição fundamental da presença (Dasein). O referencial da fala é sempre “endereçado” dentro de determinados limites e numa determinada perspectiva. Toda fala tem algo sobre que fala (Geredetes) que, como tal, constitui (224) propriamente o dito dos desejos, das perguntas, dos pronunciamentos. Nele, a fala se comunica. STMSCC: §34
Como já se indicou na análise anterior, o fenômeno da comunicação deve ser compreendido num sentido ontologicamente amplo. A “comunicação” de enunciados, por exemplo, a reportagem, é um caso especial de comunicação, apreendida fundamentalmente como existencial. Nela se constitui a articulação da convivência que compreende. É ela que cumpre a “partilha” da disposição comum e da compreensão do SER-COM. Comunicação nunca é a transposição de vivências, por exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A co-presença já se revelou essencialmente na disposição e compreender comuns. O SER-COM é partilhado “expressamente” na fala. Isso significa: o SER-COM já é, só que ainda não partilhado porque não apreendido e apropriado. STMSCC: §34
O nexo da fala com o compreender e a sua compreensibilidade torna-se claro a partir de uma possibilidade existencial inerente à própria fala, que é a escuta. Não dizemos por acaso que não “compreendemos” quando não escutamos “bem”. A escuta é constitutiva da fala. E, assim como a articulação verbal está fundada na fala, assim também a percepção acústica funda-se na escuta. Escutar é o estar aberto existencial da presença (Dasein) enquanto SER-COM os outros. Enquanto escuta da voz do amigo que toda presença (Dasein) traz consigo, o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria da presença (Dasein) para o seu poder-ser mais próprio. A presença (Dasein) escuta porque compreende. Como ser-no-mundo articulado em compreensões com os outros, a presença (Dasein) obedece na escuta à coexistência e a si própria como “pertencente” a essa obediência. O escutar recíproco de um e outro, onde se forma e elabora o SER-COM, possui os modos possíveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de não ouvir, resistir, fazer frente a, defender-se. STMSCC: §34
Da mesma forma, a fala contestatória tomada como resposta é uma sequência direta da compreensão daquilo sobre o que se fala, já “partilhado” no SER-COM. STMSCC: §34
A presença (Dasein) existe faticamente. O que se questiona é a unidade ontológica de existencialidade e facticidade, a copertinência essencial destas com relação àquela. A presença (Dasein), em razão da disposição a que pertence de modo essencial, possui um modo de ser em que ela é trazida para diante de si mesma e se abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser de um ente (246) que sempre é ele mesmo as suas possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira igualmente originária, tanto o ser junto ao que está à mão quanto o SER-COM os outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença (Dasein) como ser-no-mundo aberto na decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao “mundo” e em seu SER-COM os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio. STMSCC: §39
Alcançar os todos da presença (Dasein) na morte é, ao mesmo tempo, perder o ser do pre (das Da). A transição para o não mais ser presença (Dasein) retira a presença (Dasein) da possibilidade de fazer a experiência dessa transição e de compreendê-la como tendo feito essa experiência. Com efeito, o mesmo se pode recusar a cada presença (Dasein), no que concerne a si mesma. A morte dos outros, porém, torna-se tanto mais penetrante, pois o findar da presença (Dasein) é “objetivamente” acessível. Sendo essencialmente SER-COM os outros, a presença (Dasein) pode obter uma experiência da morte. Esse dado “objetivo” da morte também deverá possibilitar uma delimitação ontológica da totalidade da presença (Dasein). STMSCC: §47
Nesse SER-COM o morto, o finado ele mesmo não está mais de fato “por aí”. Ser-com indica, porém, sempre conviver no mesmo mundo. O finado deixou nosso “mundo” e o deixou para trás. É a partir do mundo que os que ficam ainda podem ser e estar com ele. STMSCC: §47
Quanto mais adequada a apreensão fenomenal do não mais ser presença (Dasein) do finado, mais clara será a visão de que justamente esse SER-COM o morto não faz a experiência do ter-chegado-ao-fim do finado. STMSCC: §47
Para a presença (Dasein), por exemplo, também pode ser impendente uma viagem, uma discussão com os outros, a renúncia de alguma coisa, ou seja, aquilo que a própria presença (Dasein) pode ser: possibilidades ontológicas próprias, que se fundam no SER-COM os outros. STMSCC: §50
A possibilidade mais própria é irremissível. O antecipar permite à presença (Dasein) compreender que o poder-ser, onde o que está em jogo é o seu próprio ser, só pode ser assumido por ela mesma. A morte não apenas “pertence” de forma não indiferente à própria presença (Dasein), como reivindica a presença (Dasein) enquanto singular. A irremissibilidade da morte, compreendida no antecipar, singulariza a presença (Dasein) em si mesma. Essa singularização é um modo de se abrir o “pre (das Da)” para a existência. Ela revela que todo ser-junto a uma ocupação e todo SER-COM os outros falha quando se trata de seu poder-ser mais próprio. Assim, a presença (Dasein) só pode ser propriamente ela mesma quando ela mesma dá a si essa possibilidade. A falha da ocupação e da preocupação não significa, contudo, de forma alguma, que esses modos da presença (Dasein) se descartem de seu ser próprio em sua propriedade. Enquanto estruturas essenciais da constituição da presença (Dasein), esses modos também pertencem à condição de possibilidade da existência. A presença (Dasein) é propriamente ela mesma, apenas à medida que, enquanto ser-junto a… na ocupação e SER-COM… (340) na preocupação, ela se projeta primariamente para o seu poder-ser mais próprio e não para a possibilidade do impessoalmente-si-mesma. O antecipar da possibilidade irremissível obriga o ente que assim antecipa a possibilidade de assumir seu próprio ser a partir de si mesmo e para si mesmo. STMSCC: §53
A possibilidade mais própria e irremissível é insuperável. O ser para essa possibilidade permite à presença (Dasein) compreender que a renúncia de si mesma lhe é impendente como a sua possibilidade mais extrema. O antecipar não lhe permite, contudo, escapar da insuperabilidade enquanto ser-para-a-morte impróprio, liberando-a, ao contrário, para a insuperabilidade. A liberação antecipadora para a própria morte liberta do perder-se nas possibilidades ocasionais, permitindo assim compreender e escolher em sentido próprio as possibilidades fáticas que se antepõem às insuperáveis. O antecipar abre para a existência como possibilidade mais extrema a tarefa de sua propriedade, rompendo assim todo e qualquer enrijecimento da existência já alcançada. Antecipando, a presença (Dasein) evita recuar para trás de si mesma e da compreensão de seu poder-ser, evitando “tornar-se velha demais para as suas vitórias” (Nietzsche). Livre para as possibilidades mais próprias, determinadas a partir do fim, ou seja, compreendidas como possibilidades finitas, a presença (Dasein) bane o perigo de, assentada em sua compreensão finita da existência, não reconhecer ou mal-interpretar as possibilidades superáveis da existência dos outros, reconduzindo-as para as suas próprias a fim de endossar sua existência fática mais própria. Todavia, enquanto possibilidade irremissível, a morte singulariza somente a fim de tornar a presença (Dasein), enquanto possibilidade insuperável, compreensiva para o poder-ser dos outros, na condição de SER-COM. Porque o antecipar da possibilidade insuperável inclui em si todas as possibilidades situadas à sua frente, nela reside a possibilidade de se tomar previamente de modo existenciário toda a presença (Dasein), ou seja, a possibilidade de existir como todo o poder-ser. STMSCC: §53
Através da abertura, o ente que chamamos presença (Dasein) está na possibilidade de ser o seu pre (das Da). Com o seu mundo, ele é, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, uma presença (Dasein) para si mesmo, e isso de tal modo que, a partir do “mundo” das ocupações, (348) ele já abriu para si mesmo o poder-ser. O poder-ser em que a presença (Dasein) existe sempre já se entregou a determinadas possibilidades. E isso porque se trata de um ente lançado. Este estar-lançado acha-se aberto pela determinação da afinação do humor, de modo mais ou menos penetrante e claro. O compreender pertence, de forma igualmente originária, à disposição (humor). Por isso a presença (Dasein) “sabe” (NH: pretende sabê-lo) a quantas ela mesma anda na medida em que se projetou em possibilidades de si mesma ou, afundando-se no impessoal, recebeu da interpretação pública do impessoal as suas possibilidades. Essa recepção, no entanto, só é existencialmente possível porque a presença (Dasein), enquanto SER-COM em compreendendo, pode escutar (NH: de onde provém esse ouvir e poder ouvir? O ouvir sensível dos ouvidos como um modo lançado de aceitação) os outros. Perdendo-se no teor público do impessoal e na sua falação, a presença (Dasein), ao escutar o impessoalmente si mesmo, não dá ouvidos ao próprio de si mesma. Para a presença (Dasein) retirar-se da perdição em que não dá ouvidos – retirar-se por ela mesma – ela deve primeiro poder encontrar a si enquanto o que não deu ouvidos a si mesma, por ter dado ouvidos ao impessoal. Esse último dar ouvidos deve ser rompido, ou seja, a própria presença (Dasein) deve dar a si a possibilidade de uma escuta que o interrompa. A possibilidade dessa interrupção reside em ser interpelada sem mediação. Esse apelo rompe o dar ouvidos ao impessoal em que a presença (Dasein) não dá ouvidos quando, de acordo com seu próprio caráter, desperta uma escuta que, em tudo, se contrapõe à escuta perdida. Se este se caracteriza pelo “ruído” da ambiguidade múltipla e variada da falação cotidianamente “nova”, o apelo deve apelar sem ruído, sem ambiguidade, sem apoiar-se na curiosidade. O que assim apelando se dá a compreender é a consciência. STMSCC: §55
À fala pertence aquilo sobre o que se fala. A fala dá indicações sobre algo e isso numa determinada perspectiva. A fala retira o que ela diz como essa fala daquilo sobre que fala como tal. Na fala, enquanto (350) comunicação, isso é o que se torna acessível à co-presença dos outros, na maior parte das vezes, através da verbalização da língua. O que no apelo da consciência constitui o referido da fala, ou seja, o interpelado? Manifestamente a própria presença (Dasein). Essa resposta é tão indiscutível quanto indeterminada. Mesmo que o apelo tivesse uma meta tão vaga, ele ainda seria para a presença (Dasein) um motivo de prestar atenção a si mesma. Pertence à presença (Dasein), no entanto, de modo essencial, que, com a abertura de seu mundo, ela está aberta para si mesma, de tal modo que ela sempre já se compreende. O apelo alcança a presença (Dasein) nesse movimento de sempre já se ter compreendido na cotidianidade mediana das ocupações. O impessoalmente si mesmo do SER-COM os outros nas ocupações é também alcançado pelo apelo. STMSCC: §56
A fim de se apreender fenomenalmente o que se ouviu na compreensão do interpelar é preciso retornar, de forma renovada, à interpelação. A interpelação do impessoalmente-si-mesmo significa fazer apelo ao si-mesmo mais próprio para assumir o seu poder-ser e isso enquanto presença (Dasein), ou seja, enquanto ser-no-mundo das ocupações e SER-COM os outros. A interpretação existencial daquilo para que o apelo faz apelo não pode pretender delimitar nenhuma possibilidade concreta e singular de existência, desde que suas possibilidades e tarefas metodológicas sejam devidamente compreendidas. Não se pode e nem se quer fixar no apelado o que sempre se dá, existenciariamente, em cada presença (Dasein), mas sim aquilo que pertence à condição existencial de possibilidade do poder-ser fático e existenciário. STMSCC: §58
Numa primeira aproximação, a compreensão cotidiana toma o “ser e estar em dívida” no sentido de um “débito”, de “ter o rabo preso com alguém”. Deve-se restituir a outrem algo a que ele tem direito. Esse “estar em dívida” no sentido de “ter débitos” é um modo de SER-COM os outros no âmbito da ocupação de providências e encomendas. Outros modos desta ocupação são também o retirar, o tomar emprestado, reter, roubar, ou seja, de algum modo, não satisfazer o direito de posse dos outros. O ser e estar em dívida dessa natureza refere-se ao que é passível de ocupação. STMSCC: §58
Esses significados vulgares de ser e estar em dívida enquanto “ter dívidas junto a…” e “ser aquele a quem algo se deve…” podem misturar-se e determinar um comportamento que denominamos de “fazer-se culpado”, ou seja, sendo responsável por uma dívida, ferir seu direito e por isso tornar-se passível de punição. A exigência (361) não satisfeita não precisa necessariamente referir-se a uma posse, H pois pode dizer respeito à convivência pública em geral. Este “fazer-se culpado” na violação de um direito pode também possuir o caráter de um “tornar-se culpado em relação a outros”. Isso não ocorre por violação do direito como tal mas por eu ser aquele a quem se deve que um outro esteja em perigo, desoriente-se ou até mesmo fracasse em sua vida. Este tornar-se culpado é possível sem que se viole a lei “pública”. O conceito formal do ser e estar em dívida no sentido de tornar-se culpado com relação a outrem deixa-se formular do seguinte modo: ser-fundamento e causa da falta na presença (Dasein) de um outro, de tal maneira que esse próprio ser-fundamento e causa determina-se como “faltoso” a partir de seu para quê. Esta falta está em não se satisfazer uma exigência do SER-COM os outros existente. STMSCC: §58
Com vistas a este fim, deve-se formalizar a ideia de “dívida” de tal maneira que fiquem de fora os fenômenos da culpa referidos ao SER-COM os outros na ocupação. A ideia de dívida deve não apenas ultrapassar o âmbito das ocupações em seu prestar contas como também deve ser desligada de qualquer referência ao dever e à lei contra os quais alguém, numa falta, assume uma dívida. Pois nesse caso se determinaria, necessariamente, a dívida como falta, como violação de alguma coisa que deveria e poderia ser. Faltar, porém, significa não ser simplesmente dado. Falta no sentido de não ser simplesmente dado de dever é uma determinação ontológica do ser simplesmente dado. Nesse sentido, nada pode faltar de modo essencial à existência, não por ela ser perfeita mas porque seu caráter ontológico é inteiramente diverso de todo ser simplesmente dado. STMSCC: §58
Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da presença (Dasein) porque a mais própria. A abertura do pre (das Da) abre, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do ser-no-mundo, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto “eu sou”. Com a abertura do mundo, sempre já se descobriram entes (378) intramundanos. A descoberta do que está à mão e do que é simplesmente dado funda-se na abertura de mundo; pois a liberação do todo conjuntural de qualquer manual exige um pre-compreender da significância. Compreendendo-a, a presença (Dasein) ocupada numa circunvisão remete para o que vem ao encontro da mão. O compreender da significância como abertura de cada mundo funda-se, assim, no compreender em virtude de… a que está remetida toda descoberta da totalidade conjuntural. O abrigo, a manutenção, o abandono de suas funções são possibilidades constantes e imediatas da presença (Dasein) para as quais esse ente, em que está em jogo seu ser, sempre já se projetou. Lançada em seu “pre (das Da)”, a presença (Dasein) já está sempre faticamente remetida a um “mundo” determinado, o seu. Junto com ele, os projetos são faticamente conduzidos da perdição nas ocupações para o impessoal. Essa perdição pode ser interpelada pelo próprio de cada presença (Dasein), e a interpelação pode ser compreendida no modo da decisão. Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do “mundo” e a abertura da co-presença dos outros nela fundada. Quanto a seu “conteúdo”, o “mundo” à mão não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está à mão, no modo de compreender e ocupar-se, e o SER-COM da preocupação com os outros sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio. STMSCC: §60
A decisão não desprende a presença (Dasein), enquanto ser-si-mesmo mais próprio, de seu mundo, ela não a isola num eu solto no ar. E como poderia, se a presença (Dasein), no sentido de abertura própria, nada mais é propriamente do que ser-no-mundo? A decisão traz o si-mesmo justamente para o ser que sempre se ocupa do que está à mão e o empurra para o SER-COM da preocupação com os outros. STMSCC: §60
Se, antecipando a morte, a presença (Dasein) pode tornar-se potente em si mesma, então, na liberdade para a morte, a presença (Dasein) se compreende na potência maior de sua liberdade finita. Nesta, que só “é” no ter-escolhido da escolha, a presença (Dasein) assume a impotência de estar entregue a si mesma, tornando-se capaz de ver, com clareza, os acasos da situação que se abriu. Se, porém, a presença (Dasein), marcada (476) por um destino, só existe essencialmente como ser-no-mundo no SER-COM os outros, o seu acontecer é um acontecer-com, determinando-se como envio comum. Com este termo, designamos o acontecer da comunidade, do povo. O envio comum não se compõe de destinos singulares da mesma forma que a convivência não pode ser concebida como a ocorrência conjunta de vários sujeitos. Na convivência em um mesmo mundo e na decisão por determinadas possibilidades, os destinos já estão previamente orientados. É somente na participação e na luta que se libera o poder do envio comum. O envio comum dos destinos da presença (Dasein) em e com a sua “geração” constitui o acontecer pleno e próprio da presença (Dasein). STMSCC: §74
Chamamos de destino a transmissão antecipadora no pre (das Da) do instante, que reside na decisão. O envio comum, entendido como o acontecer da presença (Dasein) no SER-COM os outros, também se funda no destino. Na retomada, o envio comum do destino pode abrir-se explicitamente no ater-se à herança legada. E a retomada que revela para a presença (Dasein) a sua própria história. O próprio acontecer, a abertura que lhe pertence, bem como a sua apropriação fundam-se, existencialmente, em que a presença (Dasein) está, de modo ekstático, aberta no tempo. STMSCC: §74
Aberta, a presença (Dasein) existe faticamente no modo de SER-COM os outros. Ela se mantém numa compreensibilidade pública e mediana. O “agora em que”, o “então, quando” interpretados e pronunciados na convivência cotidiana são, em princípio, compreendidos, embora só sejam datados com precisão dentro de certos limites. Na convivência “mais próxima”, vários “agora” podem, ser ditos “conjuntamente” e cada um pode datar de forma diferente o “agora” que disse: agora em que isso ou aquilo se dá. O “agora” pronunciado é dito no teor público da convivência no ser-no-mundo. Em razão de seu ser-no-mundo ekstático, o tempo interpretado e pronunciado de cada presença (Dasein) como tal já é sempre público. Como a ocupação cotidiana se compreende a partir do “mundo” das ocupações, ela conhece o “tempo” que ela toma não como o seu. Nas ocupações, ela aproveita o tempo que “dá a si mesma” e com o qual impessoalmente se conta. O público do “tempo” é, porém, ainda mais profundo quanto mais a presença (Dasein) fática se ocupa expressamente do tempo, conferindo-lhe uma contagem. STMSCC: §79
É essa interioridade fenomenológica recíproca do vivente e da Vida absoluta no Verbo de Deus que nos permite compreender o que nos importa agora: a relação original que se estabelece entre todos os homens, a experiência do outro em sua possibilidade última. Se o Verbo é a condição em que todo Si carnal vivente vem e pode vir a si, se o Verbo é, ao mesmo tempo, a condição de todo Si carnal vivente que não seja o meu, não é ele a via que é preciso [359] necessariamente tomar para entrar em relação com outrem? É aqui que a Vida absoluta revela ser, em seu Verbo, o acesso fenomenológico ao outro Si, assim como ela é para mim mesmo o acesso ao meu: a Ipseidade em que sou dado a mim e venho a mim, na qual o outro é dado a ele mesmo e vem a si. Ipseidade na qual eu posso vir a ele, na qual ele pode vir a mim. É nesse sentido, consequentemente, que a Vida é o “estar-com” como tal, essência original de toda comunidade: tanto o “estar em comum” como o que há em comum. Pois jamais poderíamos saber o que é o outro – e, antes de tudo, que ele é um Si vivente — se não soubéssemos previamente o que é a Vida que nos dá a nós mesmos. É, pois, do que vem antes do eu, de sua vinda a si mesmo — nunca de si mesmo –, que é preciso partir, se o “estar com o outro” como “estar com outrem” é possível. E jamais o é, com efeito, como “projeção” do eu no outro, projeção que, longe de poder fundar a este, o pressupõe, ao contrário.
E vê-se bem, então, em que esse “estar-com” que é a Vida absoluta em seu Verbo difere do Logos grego, da Razão dos clássicos ou do mundo heideggeriano. Pois a Razão pressupõe a exterioridade pura onde se formam tanto suas e-vidências quanto sua capacidade de falar, se é verdade que não se fala senão do que se pode ver, significando-o quando não é visto — essa exterioridade pura que é o mundo do Sein und Zeit. Essa exterioridade onde não há Ipseidade nem Si possíveis. (Michel Henry, MHE)