curiosidade

Neugier

A constituição fundamental da visão mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo CURIOSIDADE. Em suas características, a CURIOSIDADE não se limita a ver, exprimindo a tendência para um tipo especial de encontro perceptivo com o mundo. Interpretaremos esse fenômeno com um propósito fundamentalmente ontológico-existencial. Não limitaremos a sua orientação pelo conhecimento que, já cedo e na filosofia grega, foi concebido, não por acaso, segundo o “prazer de ver”. O tratado que figura em primeiro lugar na coletânea dos escritos ontológicos de Aristóteles começa com a seguinte frase: pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei (Metafísica, A 1, 980 a), “no ser do homem reside, de modo essencial, o acurar do ver”. Assim começa uma investigação que procura descobrir a origem da pesquisa científica acerca dos entes e de seu ser a partir deste modo de ser da presença (Dasein). A interpretação grega da gênese existencial da ciência não é casual. Aquilo que se pressignou na sentença de Parmênides – to gar auto noein estin te kai einai – chega, nessa interpretação, a uma compreensão temática e explícita. O ser é tudo que se mostra numa percepção puramente intuitiva, e somente esse tipo de ver descobre o ser. A verdade originária e autêntica reside na intuição pura. Desde então, essa tese tem sido o fundamento da filosofia ocidental. Dela a dialética de Hegel retirou o seu moto e somente à sua base é que se tornou possível. STMSC: §36

O que se passa com essa tendência de somente perceber? Que constituição existencial da presença (Dasein) pode ser compreendida através do fenômeno da CURIOSIDADE? STMSC: §36

A CURIOSIDADE liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse acurar em ver não trata de apreender e nem de ser e estar na verdade através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se ao mundo. Por isso, a CURIOSIDADE caracteriza-se, especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a CURIOSIDADE se ocupa da possibilidade contínua de dispersão. A CURIOSIDADE nada tem a ver com a contemplação admiradora dos entes, o thaumazein. Ela não se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração, do espanto. Ela se ocupa em providenciar um conhecimento para simplesmente ter-se tornado consciente. Os dois momentos constitutivos da CURIOSIDADE, a impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas possibilidades, fundam a terceira característica essencial desse fenômeno, que chamamos de desamparo. A CURIOSIDADE está em toda parte e em parte nenhuma. Este modo de ser-no-mundo desvela um novo modo de ser da presença (Dasein) cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada. STMSC: §36

A falação também rege os caminhos da CURIOSIDADE. É ela que diz o que se deve ter lido e visto. Esse estar em toda parte e em parte alguma da CURIOSIDADE entrega-se à responsabilidade da falação. Esses dois modos de ser cotidianos da fala e da visão não se acham simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento, mas um modo de ser arrasta o outro consigo. A CURIOSIDADE, que nada perde, e a falação, que tudo compreende, dão à presença (Dasein), que assim existe, a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com esta pretensão, porém, mostra-se um terceiro fenômeno característico da abertura da presença (Dasein) cotidiana. STMSC: §36

Supondo que aquilo que impessoalmente se pressentiu e farejou seja, algum dia, de fato transformado, será justamente a ambiguidade quem terá cuidado para que morra imediatamente o interesse pela coisa realizada. Esse interesse só subsiste no modo da CURIOSIDADE e da falação, ao dar-se como a possibilidade de mero pressentimento em comum, sem nenhum compromisso. Quando e enquanto se está na pista de alguma coisa, o mero estar junto recusa o compromisso do acompanhamento no momento em que se dá início à realização do que se pressentiu. É que, com a realização, a presença (Dasein) se vê sempre remetida a si mesma. A falação e a CURIOSIDADE perdem o seu poder. E, por isso, se vingam. Face à realização do que se pressente em comum, a falação lança logo mão de uma constatação fácil: isso qualquer um poderia ter feito, pois também já o tinha pressentido. Em última instância, a falação não está sequer empenhada em que o que ela pressente e constantemente requer aconteça realmente. Pois, com isso, ser-lhe-ia arrancada a oportunidade de continuar pressentindo. STMSC: §37

Entretanto, o tempo do empenho da presença (Dasein) no estado silencioso da realização e de um autêntico fracasso é totalmente diverso. Do ponto de vista público, é sensivelmente muito mais vagaroso do que o tempo da falação, que “vive mais velozmente”. Por isso, a falação, de há muito, já estava em outra, na mais nova. O que antes havia pressentido e uma vez realizado já chegou tarde demais com relação à novidade mais recente. Em sua ambiguidade, a falação e a CURIOSIDADE cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público. Este só consegue libertar-se em suas possibilidades positivas, quando a falação encobridora perde a voga, e o interesse “comum” morre. STMSC: §37

A ambiguidade da interpretação pública proporciona as falas adiantadas e os pressentimentos curiosos com relação ao que propriamente acontece, carimbando assim as realizações e as ações com o selo de retardatário e insignificante. Desse modo, no impessoal, o compreender da presença (Dasein) não vê a si mesmo em seus projetos, no tocante às possibilidades ontológicas autênticas. A presença (Dasein) é e está sempre “por aí” (»da«) de modo ambíguo, ou seja, por aí na abertura pública da convivência, onde a falação mais intensa e a CURIOSIDADE mais aguda controlam o “negócio”, onde cotidianamente tudo e, no fundo, nada acontece. STMSC: §37

Essa ambiguidade oferece à CURIOSIDADE o que ela busca e confere à falação a aparência de que nela tudo se decide. Esse modo de ser da abertura do ser-no-mundo também domina inteiramente a convivência como tal. Numa primeira aproximação, o outro “está por aí” (»da«) pelo que se ouviu impessoalmente dele, pelo que se sabe e se fala a seu respeito. A falação logo se insinua dentre as formas de convivência originária. Todo mundo presta primeiro atenção em como o outro se comporta, no que ele irá dizer. A convivência no impessoal não é, de forma alguma, uma justaposição acabada e indiferente, mas um prestar atenção uns nos outros, ambíguo e tenso. Trata-se de um escutar uns aos outros secretamente. Sob a máscara do ser um para o outro atua o ser um contra o outro. STMSC: §37

Os fenômenos da falação, da CURIOSIDADE e da ambiguidade foram explicitados de maneira a revelar entre eles mesmos um nexo ontológico. O modo de ser desse nexo é o que se deve agora apreender do ponto de vista ontológico-existencial. O modo básico do ser da cotidianidade deve ser compreendido no horizonte das estruturas ontológicas da presença (Dasein) até aqui obtidas. STMSC: §37

A falação, a CURIOSIDADE e a ambiguidade caracterizam o modo em que a presença (Dasein) realiza cotidianamente o seu “pre” (das Da), a abertura de ser-no-mundo. Como determinações existenciais, essas características não são algo simplesmente dado na presença (Dasein), constituindo também o seu ser. Nelas e em seu nexo ontológico, desvela-se um modo fundamental de ser da cotidianidade que denominamos com o termo decadência da presença (Dasein). STMSC: §38

Este termo não exprime qualquer avaliação negativa. Pretende apenas indicar que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença (Dasein) está junto e no “mundo” das ocupações. Este empenhar-se e estar junto a… possui, frequentemente, o caráter de perder-se no caráter público do impessoal. Por si mesma, em seu próprio poder-ser si mesmo mais autêntico, a presença (Dasein) já sempre caiu de si mesma e decaiu no “mundo”. Decair no “mundo” indica o empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pela falação, CURIOSIDADE e ambiguidade. O que anteriormente denominamos de impropriedade da presença (Dasein) recebe agora, com a interpretação da decadência, uma determinação mais precisa. Impróprio e não próprio não significam, de forma alguma, “propriamente não”, no sentido de a presença (Dasein) perder todo o seu ser nesse modo de ser. Impropriedade também não diz não mais ser e estar no mundo. Ao contrário, constitui justamente um modo especial de ser-no-mundo em que é totalmente absorvido pelo “mundo” e pela co-presença (Dasein) dos outros no impessoal. Não ser ele mesmo é uma possibilidade positiva dos entes que se empenham essencialmente nas ocupações de mundo. Deve-se conceber esse não-ser como o modo mais próximo de ser da presença (Dasein), o modo em que, na maioria das vezes, ela se mantém. STMSC: §38

A falação abre para a presença (Dasein) o ser, em compreendendo, para o seu mundo, para os outros e para consigo mesma, mas de maneira a que esse ser para… conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A CURIOSIDADE abre toda e qualquer coisa, de maneira que o ser-em esteja em toda parte e em parte nenhuma. A ambiguidade não esconde nada à compreensão de presença (Dasein), mas só o faz para rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do em toda parte e em parte nenhuma. STMSC: §38

Essa tranquilidade no ser impróprio não conduz, todavia, à inércia e à inatividade. Ao contrário, move para “promoções” desenfreadas. O decair no “mundo” já não tem mais repouso. A tranquilidade tentadora aumenta a decadência. No tocante à interpretação da presença (Dasein), pode surgir a convicção de que compreender as culturas mais estranhas e a sua “síntese” com a própria cultura levaria a um esclarecimento verdadeiro e total da presença (Dasein) a seu próprio respeito. A CURIOSIDADE multidirecionada e a inquietação de tudo saber dá a ilusão de uma compreensão universal de presença (Dasein). Mas o que propriamente se deve compreender permanece, no fundo, indeterminado e inquestionado; não se compreende que compreender é um poder-ser que só pode ser liberado na presença (Dasein) mais própria. Essa comparação de si mesma com tudo, tranquila e que tudo “compreende”, move a presença (Dasein) para uma alienação na qual se lhe encobre o seu poder-ser mais próprio. O ser-no-mundo decadente, tentador e tranquilizante é também alienante. STMSC: §38

A questão que orienta este capítulo buscava o ser do pre (das Da). O tema era a constituição ontológica da abertura, inerente à essência da presença (Dasein). O modo de ser da abertura forma-se na disposição, no compreender e na fala. O modo de ser cotidiano da abertura caracteriza-se pela falação, CURIOSIDADE e ambiguidade. STMSC: §38

O que se descobre e se abre instala-se nos modos de distorção e fechamento através da falação, da CURIOSIDADE e da ambiguidade. STMSC: §44

Se este se caracteriza pelo “ruído” da ambiguidade múltipla e variada da falação cotidianamente “nova”, o apelo deve apelar sem ruído, sem ambiguidade, sem apoiar-se na CURIOSIDADE. STMSC: §55

Esse, contudo, não é o si-mesmo que se pode tornar “objeto” de avaliação, nem o si-mesmo que se empenha com CURIOSIDADE e sem descanso no exame de sua “vida interior” e nem tampouco o si-mesmo de uma cupidez “analítica” de olhar os estados da alma e suas profundezas. STMSC: §56

Nela, a presença (Dasein) se vê livre dos “acasos” dos entretenimentos que a CURIOSIDADE solícita cria, sobretudo, a partir das ocorrências do mundo. STMSC: §62

A análise preparatória da decadência teve início com a interpretação da falação, da CURIOSIDADE e da ambiguidade. STMSC: §68

Contudo, a investigação se limitará em considerar a CURIOSIDADE porque é nela que se pode ver, mais facilmente, a temporalidade específica da decadência. STMSC: §68

A CURIOSIDADE é uma tendência ontológica privilegiada da presença (Dasein), segundo a qual ela se ocupa de um poder-ver. STMSC: §68

Entretanto, a CURIOSIDADE não atualiza o ser simplesmente dado a fim de, nele demorando-se, compreendê-lo. STMSC: §68

Enquanto esta atualização presa em si mesma ao ser simplesmente dado, a CURIOSIDADE está numa unidade ekstática com um porvir e um vigor de ter sido correspondentes. STMSC: §68

A CURIOSIDADE é toda ela impropriamente porvindoura e isto a tal ponto que ela não aguarda uma possibilidade mas, em sua avidez, só cobiça a possibilidade como algo real. STMSC: §68

A CURIOSIDADE constitui-se de uma atualização que não se sustenta e, apenas atualizando, procura constantemente fugir do aguardar em que a atualização se “mantém” e se resguarda, embora insustentada. STMSC: §68

Mas a atualização em que “surge” a CURIOSIDADE se entrega tão pouco à “coisa” que, ao conquistar uma visão, já deixa de ver para ver a próxima. STMSC: §68

Do ponto de vista ontológico, o que possibilita o não demorar-se, característico da CURIOSIDADE, é a atualização que constantemente “surge” no aguardar a uma possibilidade apreendida e determinada. STMSC: §68

O fato de a CURIOSIDADE sempre se deter no mais imediato e esquecer o que veio antes não é uma consequência da CURIOSIDADE mas, ao contrário, a sua própria condição ontológica. STMSC: §68

A CURIOSIDADE não é “provocada” pela visibilidade sem fim do que ainda não se viu mas pelo modo decadente de temporalização da atualidade que surge. STMSC: §68

Mesmo que tenha visto tudo, a CURIOSIDADE sempre inventa algo novo. STMSC: §68