A substituição do “Eu penso” pelo “Isso pensa” data, como se sabe, da célebre frase dos Sudelbücher. “Wir werden uns gewisser Vorstellungen bewußt, die nicht von uns abhängen; andere glauben, wir wenigstens hingen von uns ab; wo ist die Grenze? Wie kennen nur allein die Existenz unserer Empfindungen, Vorstellungen und Gedanken. Es denkt, sollte man sagen, so wie man sagt: es blizt. Zu sagen cogito, ist schon zu viel, so bald man es durch Ich denke übersetzt. Das Ich anzunehmen, zu postulieren, ist praktisches Bedürfnis” (Heft K. Aphorismus 76, em Georg Christoph Lichtenberg, Sudelbücher, Schrifien und Briefe, p. 412). Sobre o interesse de Wittgenstein pela crítica de Lichtenberg, ver G. E. Moore, “Wittgensteins Lectures in 1930-33”, em Philosophical Papers, pp. 306-310.
É, de fato, nos Münchener Vorlesungen de 1833-1834, Zur Geschichte der neueren Philosophie (Contribution à l’histoire de la philosophie moderne, trad. fr. J.-E Marquet), que surge pela primeira vez, ao que parece, no idealismo alemão, a fórmula impessoal extrapolada da reformulação kantiana “do” cogito cartesiano – o Ich-denke que se torna na escrita de Schelling: “isso pensa em mim” (es denkt in mir), “há pensamento em mim” (es wird in mir gedacht), sobre o modelo conscientemente assumido da locução: “es träumte mir” (“ocorreu-me um sonho”). [LiberaAS:41-42 Notas]
Em Para além do Bem e do Mal, I, § 17, Nietzsche escreve: «No que se refere à superstição dos lógicos, eu não deixaria jamais de assinalar um pequeno fato que esses espíritos supersticiosos não reconhecem facilmente, a saber, que um pensamento se apresenta quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de sorte que é falsificar a realidade dizer: O sujeito “eu” é a condição do “predicado”penso. Alguma coisa pensa, mas que essa alguma coisa seja justamente o antigo e famoso “eu”, eis, para nos exprimir com moderação, uma simples hipótese, uma asserção, e em todo caso não uma “certeza imediata”. Em última análise, esse “alguma coisa pensa já afirma demais; esse “alguma coisa” já contém uma interpretação do processo e não pertence ao próprio processo. Nessa matéria, raciocinamos conforme a rotina gramatical: “Pensar é uma ação, toda ação supõe um sujeito que a realiza, consequentemente…” Foi se conformando mais ou menos ao mesmo esquema que o atomismo antigo tentou ligar à “energia” que age uma partícula de matéria que considerava como seu centro de ação e sua origem, o átomo. Espíritos mais rigorosos nos ensinaram enfim a passar sem esse resto de matéria, e talvez um dia os lógicos também se habituem a passar sem esse “alguma coisa” a que se reduziu o respeitável “eu” do passado.» (NT).
Esse texto notável contém dois pontos: a. contra a superstition des logiciens (superstição dos lógicos), que faz do je (Ich, eu), ao invés do ça (Es, isso), o sujeito do processo do pensamento (ou que faz do ça um sujeito distinto exterior, também ele, ao processo designado pelo predicado, o que dá no mesmo). Esse ataque podería ser endossado por Lichtenberg, Wittgenstein ou Descombes, para não dizer pelo conjunto da(s) modernidade(s), engajada(s) na crítica da “teoria clássica do sujeito”, sejam elas estruturalistas, pós- ou antiestruturalistas. Chama a atenção do arqueólogo um deslize que vai de es a quelque chose (alguma coisa), e depois a “one”. Ainda que mascare a tradição do isso, ele tem pouca consequência em comparação com esse outro, que interfere na tra-dução de b., a grammatische Gewohnheit (isto é, a suposta “rotina gramatical”: “the usual grammatical formula”). Do que, se é que se atreve a dizer, se trata? Do raciocínio que fundamenta a suposta “certeza imediata” do Ich-Satz cartesiano. Esse raciocínio gramatical (ou: de gramático) tem a forma de um silogismo, do qual se pode supor legitimamente que a conclusão, não expressada, não é outra senão o teorema que articula a “superstição dos lógicos”, a determinação do “eu” como agente do pensamento, a afirmação que “o pensamento vem quando eu quero”, em suma, que o sujeito “eu” é a [51] condição do predicado “penso”. [LiberaAS:48-52]