humores

Em A Medicina da alma, de Hugo de São Vítor, o processo de transfiguração alegórica da teoria dos humores parece alcançar sua realização. Se em Hildegard von Bingen a polaridade negativa da melancolia ainda era interpretada como o sinal da queda original, em Hugo o humor negro já se identifica com a tristitia utilis, em uma perspectiva na qual a patologia dos humores se torna o veículo corpóreo do mecanismo soteriológico:

A alma humana usa quatro humores: como sangue, usa a doçura, como bílis vermelha, a amargura, como bílis negra, a tristeza… A bílis negra é fria e seca, mas gelo e secura podem ser interpretados ora em um sentido bom, ora em sentido mau… Ela torna os homens ora sonolentos, ora vigilantes, ou seja, ora cheios de angústia, ora vigilantes e voltados para os desejos celestes… Tiveste através do sangue a doçura da caridade, tem agora, através da bílis negra, ou melancolia, a tristeza pelos pecados. [O autor de fato é Hugo de Folieto (Patrologia latina, 176,1183 et seq).]

Só se torna compreensível porque, nos escritos do chefe da escola médica Salernitana, Constantino Africano, aparece como uma das causas importantes da melancolia a “ânsia de ver o sumo bem” por parte dos religiosos, e porque, por outro lado, um teólogo como Guilherme de Auvérnia chega mesmo a afirmar que no seu tempo “muitos homens piedosíssimos e religiosíssimos desejavam ardentemente a enfermidade melancólica” [GUILIELMI PARISIENSIS. De universo I, 3.7 (em: Opera omnia, op. cit.)], se o vermos relacionado com essa recíproca compenetração entre acídia e melancolia, que mantinha intacta a sua dupla polaridade na ideia de um risco mortal inscrito na mais nobre das intenções humanas ou de uma possibilidade de salvação escondida no perigo mais extremo. Na insistente vocação contemplativa do temperamento saturnino, continua vivo o Eros perverso do acidioso, que mantém o próprio desejo fixo no inacessível. [AgambenE:38]