homem espírito

O homem aparece depois da criação da natureza e constitui o oposto ao mundo natural. É o ser que se eleva ao segundo mundo. Temos em nossa consciência universal dois reinos: o da natureza e o do espírito. O reino do espírito é o criado pelo homem. Podemos forjar toda classe de representações sobre o que seja o reino de Deus; será sempre um reino do espírito, que deve ser realizado no homem e estabelecido na existência.

O terreno do espírito tudo abarca; encerra tudo quanto já interessou ao homem e ainda o interessa. O homem nele atua; e o que quer que faça, é o homem sempre um ser em que o espírito é ativo. Pode ser interessante, portanto, conhecer no curso da história a natureza espiritual em sua existência, isto é, a união do espírito com a natureza, ou seja, a natureza humana. Ao falar de natureza humana, tem-se pensado sobretudo em algo permanente. Nossa exposição da natureza humana deve convir a todos os homens, aos tempos passados e aos presentes. Esta representação universal pode sofrer infinitas modificações; mas, de fato, o universal é uma e a mesma essência nas mais diversas modificações. A reflexão pensante é que prescinde da diferença e fixa o universal, que deve atuar de igual modo em todas as circunstâncias e revelar-se no mesmo interesse. O tipo universal pode também revelar-se naquilo que dele mais afastado parece; no rosto mais desfigurado pode-se ainda vislumbrar o humano. Pode haver uma espécie de consolo e compensação no fato de que nele permaneça um traço de humanidade. Nesta linha de interesse, a consideração da história universal põe o acento no fato de que os homens permaneceram iguais, de que os vícios e as virtudes têm sido os mesmos em todas as circunstâncias. E, portanto, poderíamos dizer com Salomão: não há nada de novo sob o sol.

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O homem, porém, se sabe a si mesmo; e isto o diferencia do animal. É um ser pensante; mas pensar é saber acerca do universal. O pensamento põe o conteúdo no simples, e deste modo o homem é simplificado, isto é, convertido em algo interno, ideal. Ou dizendo melhor: eu sou o interno, simples; e somente na medida em que coloco o conteúdo no simples, faz-se universal e ideal.

O que o homem é realmente, tem que o ser idealmente. Conhecendo o real como ideal, cessa de ser algo natural, cessa de estar meramente entregue a suas intuições e impulsos imediatos, à satisfação e produção destes impulsos. A prova de que sabe isto é que reprime seus impulsos. Coloca o ideal, o pensamento, entre a violência do impulso e sua satisfação. Ambas as coisas estão unidas no animal, o qual não rompe por si mesmo esta união (que só pela dor ou pelo temor pode romper-se). No homem o impulso existe antes (ou sem) que o satisfaça. Tendo possibilidade de reprimir ou satisfazer seus impulsos, o homem obra segundo fins e determina-se segundo o universal. O homem deve determinar que fim deve ser o seu, podendo propor-se como fim inclusive o totalmente universal. O que o determina nisto são as representações do que é e do que quer. A independência do homem consiste nisto: em que sabe o que o determina. Pode, pois, propor-se por fim o simples conceito; por exemplo, sua liberdade positiva. O animal não tem suas representações como algo ideal, real; falta-lhe, por isso, esta independência íntima. Também o animal possui, como ser vivo, a fonte de seus movimentos em si mesmo, mas não é estimulado pelo exterior se o estímulo já não estiver nele; o que não corresponde a seu interior, não existe para ele. O animal entra em dualidade consigo mesmo, por si mesmo e dentro de si mesmo. Nada pode intercalar entre seu impulso e a satisfação do mesmo; não tem vontade, não pode levar a cabo a inibição. O estímulo começa em seu interior e supõe um desenvolvimento imanente. Mas a independência no homem não reside no fato do movimento começar nele e sim por poder inibir o movimento. Rompe, pois, sua própria espontaneidade e naturalidade.

O pensamento de que é um eu constitui a raiz da natureza do homem. O homem, como espírito, não é algo imediato, mas essencialmente um ser voltado sobre si mesmo. Este movimento de intervenção é um traço essencial do espírito. Sua atividade consiste em superar a imediatez, em negar esta e, por conseguinte, em voltar-se sobre si mesmo. É, portanto, o homem aquele que ele próprio faz, mediante sua atividade. Somente aquele que se volta sobre si mesmo é sujeito, efetividade real. O espírito só é como seu resultado. A imagem da semente pode servir para esclarecer isto. A planta começa com ela, mas ela é por sua vez o resultado da vida inteira da planta. A planta desenvolve-se, portanto, para produzir a semente. A impotência da vida consiste, no entanto, em que a semente é começo e ao mesmo tempo resultado do indivíduo, é distinta como ponto de partida e como resultado, e, no entanto, é a mesma: produto de um indivíduo e começo de outro. Aqui, ambos os aspectos se acham tão separados, como a forma da simplicidade no grão e o curso do desenvolvimento na planta.

Todo indivíduo tem em si mesmo, um exemplo mais próximo. O homem é o que deve ser, mediante a educação, mediante a disciplina. Imediatamente, o homem é apenas a possibilidade de o ser, isto é, de ser racional, livre; é apenas a determinação, o dever. O animal muito depressa termina sua educação; não se deve, porém, considerar isto como um benefício da natureza para com o animal. Seu crescimento é só um robustecimento quantitativo. O homem, pelo contrário, tem, que se fazer a si mesmo o que deve ser; tem que adquirir tudo por si só, justamente porque é espírito; tem que sacudir o natural. O espírito é, portanto, seu próprio resultado. (Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte; Introdução geral, II, 1) [Hegel]