A fenomenologia é a ciência da essência dos fenômenos e essa essência é o que os torna possíveis como fenômenos. A possibilidade interior de um fenômeno, seja ele qual for, não é outra senão sua fenomenalidade, ou seja, seu aparecer. Devemos, portanto, distinguir rigorosamente o que aparece, por exemplo, a mesa que está à minha frente, do que lhe permite que ela apareça.
Esta questão é estudada na Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura. Kant mostra ali que o que permite a esta mesa aparecer para mim tal como me aparece é o espaço enquanto representação a priori, que serve de base para intuições externas. Para que um objeto espacial qualquer seja possível, devo possuir a intuição do espaço. O espaço é, portanto, a condição de possibilidade dos fenômenos. Para ampliar a questão, podemos estabelecer este princípio: a condição de possibilidade de um fenômeno não é senão seu conteúdo particular, ou mais precisamente o que permite que ele se mostre, ou seja, sua manifestação ou fenomenalidade. O objeto da fenomenologia não é, portanto, o objeto no sentido em que o entendemos de maneira comum, mas a maneira pelo qual ele se dá a nós. Esta definição fundamental é formulada nas famosas lições de 1905, dadas por Husserl em Göttingen, que renovam completamente a concepção do tempo na modernidade. Husserl mostra que o objeto próprio da fenomenologia são “os objetos no como”, melhor, no como de sua dação para nós. Se considerar precisamente a temporalidade da dação, o objeto, por exemplo, esta conferência, poderá ser dada a mim no presente, aqui e agora, ou no passado, como será o caso daqui a pouco, ou mesmo no futuro como antecipais. Como aponta Husserl, “a forma do como é a orientação: o atual, o passado imediato, o advindo”. Em outras palavras, a dação ao passado, a doação ao presente, a doação ao futuro são temas de pesquisa que devem ser identificados como tal. O que significa, por exemplo, uma dação ao futuro, seja ele qual for, seja a meu trajeto para a estação se eu tiver que logo pegar o trem ou qualquer outro projeto?
Diria, portanto, que a fenomenologia não considera os objetos tanto em sua particularidade quanto no como de sua dação. É abrir um campo infinito de pesquisa porque este objeto, digamos que esta sala de seminários com seus participantes, pode se dar aqui a mim em um como sempre novo: pode na na percepção atual, mas também na imaginação. Pode mesmo se dar a mim conceitualmente: o que é um seminário de sociologia? E assim por diante. Esses modos de dação são absolutamente fundamentais, eles são mais importantes do que aquilo que nos é dado através deles.
Levando adiante a análise, direi que o objeto da fenomenologia está localizado além do objeto no como de sua dação, ou seja, além do modo como ele se dá a mim, por exemplo, esta mesa aqui apresentada enquanto um objeto de percepção no espaço. Mais radicalmente, o objeto da fenomenologia consiste em não mais se ocupar dos objetos para tomar unicamente em consideração seus modos de dação enquanto eles são modos do que se pode denominar aparecer puro. Independentemente de tudo o que aparece, há com efeito um aparecer puro que disto é a condição. O objetivo da fenomenologia é, portanto, o modo de dação, ou seja, o modo de mostração, de manifestação, de revelação – todos estes termos sendo equivalentes. Podemos dizer mais precisamente que o objeto da fenomenologia é a fenomenalidade enquanto processo, dito de outro modo, a fenomenalização da fenomenalidade, quer dizer ainda a maneira pela qual a fenomenalidade pura se fenomenaliza, vem a se mostrar efetivamente. Mas então, se o objeto da fenomenologia é o modo de fenomenalização dos entes, esta questão permanece formal. Enquanto só se fala com efeito do modo de fenomenalização em geral, não se diz ainda em que consiste fenomenologicamente, em um aparecer efetivo, esta maneira de se fenomenalizar. E, no entanto, é isso que deve ser dito.
Ora, se nos referirmos aos princípios essenciais da fenomenologia como foram definidos por Husserl, vemos que esse modo de fenomenalização da fenomenalidade, ou seja, a efetividade de um aparecer, permaneceu em uma total indeterminação, que atinge no coração os princípios e exige que essa fenomenologia seja levada mais adiante. [HENRY, Michel. Auto-donation. Entretiens et conférences. Paris: Prétentaine, 2002, p. 17-19]