A) Primeira tese: O espaço a priori, isto é, absolutamente independente da experiência. Que o seja, não cabe dúvida nenhuma por duas razões fundamentais: a primeira é que o espaço, longe de estar derivado da experiência, é o suposto da experiência, porque não podemos ter experiência de nada senão no espaço. Se por ter experiência entendemos ter percepção, intuição sensível disso, isso de que tenhamos intuição sensível supõe já o espaço. Pois como posso ter intuição sensível ou percepção de uma coisa se essa coisa não é algo em frente a mim? E sendo algo em frente a mim, está contraposta a mim como um polo a outro polo, por conseguinte, está no espaço que me rodeia. O espaço é, pois, o suposto mesmo de qualquer percepção, de qualquer intuição sensível.
Se entendemos por experiência a sensação mesma, é ela menção espacial. A sensação mesma ou é puramente interna, e então carece de objetividade, ou é externa, quer dizer, refere-se a algo fora de mim. Por conseguinte, todo ato de intuição sensível, a menor sensação, se é objetiva, supõe já o espaço. Assim, pois, o espaço, por esta razão, é evidentemente a priori, independente por completo da experiência, não se deriva da experiência, mas antes a experiência já o supõe.
Mas há ainda outra razão, e é a seguinte: nós podemos perfeitamente bem pensar o espaço sem coisas; porém não podemos de maneira nenhuma pensar as coisas sem espaço. Por conseguinte, o pensamento das coisas supõe já o espaço; porém o pensamento do espaço não supõe as coisas. É perfeitamente possível pensar a extensão pura do espaço, o espaço infinito, estendendo-se em suas três dimensões, infinitamente, sem nenhuma coisa nele. Porém é absolutamente impossível pensar uma coisa real, sem que essa coisa real esteja no espaço, quer dizer, nesse âmbito prévio no qual se localiza cada uma de nossas percepções. Assim pois, o espaço é a priori; não se deriva da experiência. Kant usa indiferentemente como sinônimo o termo a priori e o termo “puro”. Razão pura é razão a priori; intuição pura é intuição a priori. Puro e a priori ou independente da experiência são para ele termos sinônimos.
Resta ainda para demonstrar que o espaço, que é puro e a priori e que não se deriva da experiência, mas que a experiência supõe, esse espaço é uma intuição. Que quer dizer aqui Kant? Imediatamente o entenderemos. Quer dizer que o espaço não é um conceito. Que diferença há entre um conceito e uma intuição? O conceito é uma unidade mental dentro da qual estão compreendidos um número Indefinido de seres e de coisas. O conceito de homem é a unidade mental sintética daqueles caracteres que definem todos os homens. Por conseguinte, o conceito cobre um número indefinido de coisas, de seres aos quais se refere. O conceito de mesa cobre uma multidão de mesas. O conceito de astro cobre uma multidão de astros. Pelo contrário, intuição é a operação, o ato do espírito que toma conhecimento diretamente de uma individualidade. Eu não posso ter intuição do objeto de um conceito, já que o objeto de um conceito é um número indefinido de seres. Posso ter intuição de este homem, concreto, particular, um só; porém não posso ter intuição do homem em geral.
Por conseguinte, os conceitos não são conhecidos por intuição, mas são conhecidos de outra maneira; porém, agora não tratamos dela. Ao invés, uma intuição nos dá conhecimento de um objeto particular, único, e é isso que aconteceu com o espaço. O espaço não é um conceito, porque o espaço não cobre uma espécie ou um gênero dos quais multidão de pequenas espécies sejam os indivíduos; não há muitos espaços; não há mais do que um só espaço; o espaço é único. Sem dúvida, falamos de vários espaços, mas quando falamos de vários espaços, quando nos referimos aos espaços siderais ou dizemos que em um edifício complicado há muitos espaços (cada sala contém um espaço); quando dizemos isso, é uma maneira literária de falar, porque na realidade sabemos muito bem que cada um desses espaços particulares não é mais do que uma parte do espaço universal, do único espaço. O espaço não é, por conseguinte, um conceito que cobre uma multidão indefinida de objetos, mas antes, é um só espaço, um espaço único, e por isso eu o conheço por intuição. Quando tenho a intuição de um sistema de coordenadas de três dimensões, tenho a intuição do único espaço que há, de todo o espaço. Por conseguinte, meu conhecimento do espaço é intuitivo, e o espaço não é um conceito mas uma intuição.
Mas há pouco demonstramos que o espaço é a priori, independente da experiência, ou, como diz também Kant, puro. Então podemos já dizer agora, com plenitude de sentido e demonstrativamente, que o espaço é intuição pura. [Morente]