Numa célebre passagem, o autor do Fedro, em meio a um mito egípcio, apresenta uma censura à palavra escrita que faz parecer questionável o motivo pelo qual ele, afinal, como filósofo se serviu da escrita (Fedro 274c-275e). Pois a invenção desta teria um efeito de substituta da memória, induzindo a “levar para casa por escrito” coisas incompreendidas, criando no leitor a ilusão de possuir aquilo que está escrito, sem que o tenha compreendido, assimilado espiritualmente, sem que isso tenha sido “inscrito em sua alma”, sem que tenha, pela compreensão, migrado para o intelecto. Para comparar: por exemplo, o personagem literário professor Kien no romance Alto da fé, de Elias Canetti, lança mão do método de escrever num caderno tudo o que o aborrece, porque assim ele tira da cabeça essas banalidades incômodas e as exila no papel e finalmente perde o pensamento delas. Platão quer impedir justamente isto: simplesmente poder perder o pensamento filosófico (isso também pode incluir a concepção ideal da mania filosófica, segundo a qual o indivíduo, no melhor dos casos, não tem o pensamento, mas este o tem). De resto, o escrito circula indiscriminadamente entre aqueles que o compreendem e os que não, ou não o compreendem ainda, ou não corretamente; e, do mesmo modo, o logos contido na escrita também não pode escolher quem tomará por domicílio, mas o ganho para os que o levam consigo é pequeno, decepcionante e muitas vezes também enganador: estes se julgam sábios apenas por já [13] possuírem o escrito e serem capazes de lê-lo. Mas nem eles nem o escrito, como logos fundido em letras, podem prestar contas (a expressão grega para isso, logon didonai, também significa algo como “dar ou reproduzir o sentido”). Tudo o que está escrito “assemelha-se bastante à pintura: as figuras pintadas comportam-se como seres vivos, mas se alguém as interrogar manter-se-ão solenemente silenciosas. E o mesmo acontece com os escritos. Poderias pensar que eles falam como se tivessem alguma compreensão, mas, se os interroga a respeito do que dizem, eles se limitam a repetir sempre a mesma coisa” (Fedro 275d). Daí também ocorre que o escrito, quando “ofendido ou injustamente insultado, sempre precisa do auxílio de seu autor, pois não é capaz de se defender nem de ajudar a si mesmo” (Fedro 275e).
Essa última situação é mostrada por Platão no Teeteto por meio da célebre expressão de Protágoras do homem como “medida de todas as coisas”: a expressão, tal como está escrita, crua e sem comentários, não pode prestar contas, é uma declaração fixa acerca do mundo; e nessa fixação condensada do mundo, que não fornece nada sobre o sentido, a frase se iguala a uma doutrina esotérica, de sorte que devemos perguntar atônitos se porventura Protágoras não “era um poço de sabedoria e falou por enigmas para a multidão, na qual nos incluímos, mas disse a verdade em segredo para seus discípulos” (Teet. 152c). Como um mito (essa palavra não aparece aí), a frase de Protágoras é, num mau sentido, “crédula” e deve ser aceita, ou não, com base na confiança na autoridade do autor. Mas mal se pode interrogá-lo. Não se pode interrogar o autor morto, nem a frase, e evidentemente é preciso se conformar com isso. Por isso, Sócrates passa a cuidar do dito do filósofo “como um órfão” e a importar-se com ele, procurar entendê-lo, protegê-lo e falar por ele como um tutor. Segue-se, portanto, uma desmontagem de Protágoras (Teet. 165e-168d), e a malignidade proposital de Sócrates não deixa de atingir seu efeito entre os ouvintes no diálogo. De suas reações pode-se inferir sem dificuldade como lhes é desagradável que Sócrates tenha convertido o solene dito de sofista celebrado em vida — e estimado por alguns dos interlocutores presentes que o conheceram pessoalmente — num órfão dependente de ajuda externa gentil, que balbucia coisas incompreensíveis e precisa muito mais de compaixão e tolerância bem-intencionada do que de discussão intelectual de igual para igual. O significado da crítica de Platão à palavra escrita é esclarecido tanto por isso quanto por algumas passagens, por exemplo do Político ou das Leis, que compreensivelmente dizem que não se deve seguir a letra das leis, mas seu espírito, pois, gostaríamos de acrescentar, a letra mata, o espírito vivifica. [LéxicoPlatão:13-14]