7. Ao contrário do que se diz, nada se faz com amor. O ódio ou — o que talvez seja pior — a indiferença é que impera nos corações empedernidos das «coisas» que nós somos, tudo dividindo em outras «coisas» separadas, mesmo que elas se amontoem por aí, sem deixar interstícios. O que se faz ou já feito nos aparece «com amor» não é «coisa» qualquer coisa que se deixe classificar por gêneros e espécies. O «coisificado» é resíduo de uma degenerescência diabólica da criação divina ou do que de divino ainda persiste no homem e no mundo, do que de nós emana ou do que de nós se derrama em raros momentos de distração, e do que a natureza, sempre distraída, produz, como se nada produzisse, ou como outro o produzisse por ela. Concentrado, o Homem faz «coisas»; distraído, vê, nas coisas que faz, um acréscimo de ser, que sempre lhes excede os limites e, por conseguinte, lhes subverte o caráter de «coisas». Mas, que é a distração? Precisamente o que o Diabo comprou, quando lhe vendemos a alma. O Diabo não quer que nos distraíamos; quer concentração pertinaz na sua obra; quer que sempre concentrados prossigamos, obedientes, à [94] oscilação exata de um metrônomo, e não abandonados à pulsação vital de um coração, naquele construir que é triste arremedo do criar; quer-nos como a moeda falsa com que se compram deuses que a Deus se oponham. Ele, que nada podia comprar, a Quem nada pôs à venda, ardilosamente achou o meio de nos manter atentos, de olhos sempre fitos no afã de construir um mundo premeditado, à custa do que sobra da destruição de qualquer mundo nascido da autocontenção momentânea de um Caótico que, por sê-lo, se furta a todo o premeditado. Quem pode prever a configuração de um subproduto do Caos Excessivo? A obra do Diabo é demasiado fácil. Daí que ele arrebanhe a maioria dos homens, como o Grande Pastor da Negação. Quem não se apresta gostosamente a dissecar o Universo quando nele se lhe apresenta o cadáver de um deus? Só um distraído, quer dizer, o que resiste, sem querer, à visão atenta e interessada das «coisas». Distraído, é todo o desatento à morte. E o que distrai o distraído, o que desatenta o desatento, é, sem dúvida, o amor. [EudoroMito:94-95]
40. Mas de que vale contar histórias que tão naturalmente redundam no anedótico? Da comicidade ou do humor, ligados à distração do poeta, do cientista e do filósofo, já nem é preciso falar; mas nem tudo se disse acerca da distração genérica que envolve essas distrações específicas. Como se distrai o distraído? Que faz que ele se distraia? Decerto, a distração, é-o, de um sujeito que se concentra no que a outros sujeitos provoca a distração. A distração do religioso, do poeta, do cientista criador, do filósofo que sempre o é, de cada vez que o for, é concentração no que não é ação premente e urgente no Mundo do forçado trabalho que se aplica na utilidade imediata das «coisas», no atento olhar a perigos, como o de cair num fosso, quando se caminha, de noite, contemplando o brilho das estrelas do céu. O astrônomo de uma época que não está longe, o astrônomo para o qual «astronomia» ainda não era trabalho de laboratório, mas puro deslumbramento, foi típico das distrações ou da não-concentração nas «coisas» da terra, embora, então, ainda mal tivéssemos emergido do tempo em que céu e terra eram as duas metades opostas e, por isso, complementares do universo em que vivíamos. A distração relativa a um mundo é, pois, concentração relativa a outro mundo. Por conseguinte, distração e concentração só se opõem no mesmo mundo. Quando se entrevê a existência de mais algum, a distração de um é concentração no outro. Por isso, agora, podemos inverter o sentido da comicidade. Pois não será eminentemente cômico, que o [127] «homem humano» diga que se distrai quando atenta no espetáculo em que se lhe oferece a visão de si mesmo, labutando entre «coisas», no mesmo mundo das «coisas»? O teatro e o cinema, o romance e a novela, «engajados», engajam-nos como tripulação de uma nau fatalmente destinada ao naufrágio. [EudoroMito:127-128]