DESPRENDIMENTO, DESPRENDIDO (ABGESCHIEDENHEIT, ABGESCHIEDEN)
Abgeschiedenheit: desprendimento, retraimento, aseidade;
abgeschieden: desprendido, livre, solto, à vontade no próprio seu
Ab-geschieden-heit vem do verbo abscheiden. Este é composto de ab, que significa de (ab, em latim; apo, em grego), afastando-se de; e schei-den, separar, cujo particípio passivo é geschieden, separado de. Daí: Ab-geschieden + heit. E -heit é um sufixo para indicar a formalidade abstrato-essencial. Abschied é despedida, isto é, deixar ser a remissão de cada coisa na unicidade da sua identidade. A tradução para o português de Abgeschiedenheit ficou desprendimento, acentuando a conotação de não estar preso a nada, a não ser a si mesmo; livre e solto, na ab-soluta identidade diferencial de si, a partir e em si, portanto na aseidade e inseidade da plena satisfação e fruição de si mesmo. Essa mesmidade se chama para Eckhart Deus, uno e trino. Deus é pura e limpidamente ele mesmo, separado de tudo quanto não é ele mesmo. Uma separação de tudo quanto não é si mesmo, a in-sistência na ab-soluta identidade para dentro do abismo da solidão de si mesmo é a separação, cuja despedida (Abschied) remete a Deus, à unicidade decisiva de si mesmo, livre da contração a si, como diferença do e contra outro. É unicidade solta, à vontade como identidade com tudo, na união com outro, na intimidade abissal de identificação com todos os entes no encontro. Essa unicidade da liberdade, fonte donde salta o ser com e o ser do e para outro recebe no pensamento do cristianismo medieval o nome de pessoa, e perfaz o núcleo da dinâmica do mistério da Santíssima Trindade, um Deus em três pessoas. Pai, Filho e Espírito Santo. A dinâmica do relacionamento Pai-Filho-Espírito Santo como absoluta soltura da liberdade do mesmo, como Abgeschiedenheit se chama geração e processão ou simplesmente geração, da qual surge o relacionamento de Deus com os seres humanos como o da geração, ou melhor, filiação divina, de tal sorte que a criatura-homem é filho de Deus no Filho Unigénito do Pai, no Espírito Santo. E então através do homem, tudo que é e não é, tudo que pode ser, tudo quanto possa surgir dentro de um determinado possível sentido do ser, portanto a imensidão, profundidade e vitalidade criativa do abismo da possibilidade de ser, se torna também recepção da filiação divina, de tal sorte que criação, o seu universo no seu ser, repercute em mil e mil modulações e variações o tônus e a tonância do sentido de ser da filiação divina. Nesse sentido ser humano é abgeschieden, ele mesmo, na finitude, isto é, no bem concreto e definido da sua singularidade única, ab-soluta e livre, pessoa como cada um, filho único e singular na intimidade do ser com e do ser para do Deus Uno e trino. E todos os entes do universo não-humano recebem o ser e o sentido do seu ser, a partir e dentro da sonoridade da filiação divina, como caixa de ressonância na recepção da mesmidade dessa imensa sinfonia do encontro do amor de Deus. Essa visão de Deus, o único ser simpliciter, e a pregnância da sua presença como universo-criação no fluxo da dinâmica da filiação divina, fazem duplicar o conceito de Deus em: Deus e deitas, Deus e deidade, que na tradição teológica medieval recebeu a formulação: Deus quoad nos e Deus quoad se. [Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart]